“Crónica de duas cronologias ou um conto de duas cidades” — com abraços a Manuela Poitout e Campos Braz
O conto é de duas cidades. As cronologias também. "Santarém Raízes e Memórias" e "Cronologia do Entroncamento da Pré-história ao final do Estado Novo", são o pretexto da crónica.
Fui de carro com Miguel Noras e António Canavarro ao Entroncamento, em busca de Manuela Poitout. Há meses, com casa cheia, a historiadora lançou a Cronologia do Entroncamento da Pré-história ao final do Estado Novo (Poitout, 2023). Cerca de 200 pessoas (ou mais) ouviram os preletores. Foi uma honra ouvir José Fanhais e sentir a presença de José Mário Branco, a quem conheci na mesma sala (Centro Cultural do Entroncamento), numa acção política do Bloco de Esquerda (BE), no ano da era cristã de 2002.
Verdadeiro fenómeno toda a audiência aguentou sete preleções. O escriba entendeu que à terceira o debate já tinha morrido. Subitamente alguém disse que “memória não é história”! António Canavarro saltou da cadeira, visivelmente irritado. Ora a memória não é a base no nosso ofício de historiar? Não tiremos a memória da vida e história será vivida. Ciência ou literatura? Ciência e literatura…?! A história pode ser árida como um manual de ortopedia; desafiante como o teorema de Fermat; encantatória como o Mandarim (Eça de Queirós, 1980), um dos mais belos livros de todos os tempos.
Houve porém um um erro de palmatória, ao contrário que que disse um dos preletores, de cronologias se falava: há uma cronologia de Santarém! Escrita por José Campos Braz (2000), chama-se Santarém Raízes e Memórias, foi editada pela Santa Casa da Misericórdia de Santarém (SCMS), sendo dedicada ao cronista, com seguinte parágrafo:
“[…] Sou um saudosista no sentido criacionista e futurista em que Teixeira de Pascoaes falava de saudade, mais projetada no futuro do que no passado. / É certo que toda esta maneira de estar na vida não me terá proporcionado grande pecúlio material para legar a meus filho e netos, porém, do que os quero fazer herdeiros, isso sim, é do bom nome da família, e do exemplo de carácter com que sigo a minha vida e a recebi dos meus pais […], Dedicatória ms. de Campos Braz a Raimundo Noras, 18/3/2000]
Carácter que escasseia no mercado. Reputados académicos de Santarém e não só, usam e abusam de Campos Braz (ou de outros autodidatas), sem as devidas referências, por falta de coluna vertebral e por pouca vergonha na cara. Diz-se que nem tudo é fiar, pois nem tudo é de fiar em quaisquer livros, e daí? A objetividade do discurso histórico passa sempre, naturalmente, pelo cruzamento de fontes. E como defendeu Ricouer, que os eruditos, procurem onde é uma como ética do discurso historiográfico.
Não nos movem intuitos comparativos. Imbuído de amor à cidade, com a preparação e o voluntarismo que teve, Campos Braz fez a sua cronologia. Aí, de entre outros, homenageou amigos como Diamantino Veloso, registou presidentes de Câmara, vereações e Governadores Civis, com base em registos oficiais. (É certo, confundiu o Infante Santo com D. Fernando, só não erra quem não faz, e os meios de acesso à ciência eram outros, já que ninguém da anciã Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico Cultural de Santarém, à época, o soube ou quis ajudar, casa a que deu tanto de si).
Obviamente que o traquejo da história técnica vem da também da escolarização académica e é de experiência feito. Continua a faltar uma cronologia crítica de Santarém, de certo modo, honrando a memória de Campo Braz, homenageando-o.
Rigor científico, experiência, metodologia na citação de fontes, tudo isso caracteriza o trabalho de um historiador experimentado. Noções que geralmente escapam ao autodidata, o qual tem, quase sempre, o coração no lugar certo.
A Cronologia do Encontro não é só um livro de história, também é uma prova de amor da autora aos seus lugares. Tão novo, já um clássico um modelo de cronologia ímpar na história local. Quer pela cuidada citação de fontes, quer audácia narrativa na cronologia, já ensaiada por Campos Braz. O escriba ainda saudou a ilustre colega, dela conhecia um brilhante artigo (Poitout, 2013: 11-54). Agora lê tudo o resto.
Santarém Raízes e Memórias, tem dado pistas para tantas outras fontes, no valor axiológico que norteia a ciência histórica: a ilusão da verdade. É um livro de história. É uma memória. É um homem no seu tempo. Sem ele eu não estaria aqui
Referências:
Braz, José Campos (2000), Santarém Raízes e Memórias – páginas da minha agenda – efemérides. SCMS.
Eça de Queirós, (1980), O Mandarim. Lello Editores.
Poitout, Manuela, (2013) “Clementina Relvas e a condição feminina do seu tempo (1857-1934)” [In Nova Augusta – revista cultura], pp. 11-54.
Poitout, Manuela (2022), Cronologia do Entroncamento da Pré-História ao Final do Estado Novo. Câmara Municipal do Entroncamento.