A arte de fazer teatro no Sobralinho
À Margem / Opinião
Alexandre Lyra Leite é uma personalidade do concelho de Vila Franca de Xira com trabalho feito e para mostrar. O director e encenador do Inestética tem marcado um percurso no Palácio do Sobralinho que é de admirar e enaltecer, e está também de acordo com a importância do espaço que o grupo ocupa. Ver um espectáculo do Inestética naquele edifício acrescenta sempre mais à memória que fica dos actores e da encenação. “A poesia é o elemento que inspira o nosso trabalho”, é uma frase importante desta entrevista que define o director artístico do Inestética e o trabalho destes últimos 30 anos, que fica a dever-se certamente a uma boa gestão e a uma grande (in) coerência na arte de fazer teatro para novos públicos.
“Não tenho tabus sobre sexo mas não me agrada o mau gosto”
A Inestética, associação cultural de Novas Ideias, está a celebrar 32 anos de actividade ininterrupta e a prenda chegou este Verão pela Direcção-Geral das Artes: um apoio financeiro para quatro anos. Alexandre Lyra Leite recebeu O MIRANTE no Palácio do Sobralinho para falar do passado, presente e futuro da companhia, que sonha poder vir a transformar-se numa fundação para apoiar jovens artistas. Tenta marcar o público em todas as suas peças e critica a falta de apoios nacionais à cultura lembrando que os artistas sem segurança laboral passam mais tempo apavorados com as contas para pagar do que com o seu próprio trabalho. Defende a construção de cubos artísticos no concelho de VFX para captar novos artistas e evoca a poesia como a musa inspiradora de todos os seus trabalhos.
Receberam pela primeira vez um apoio a quatro anos. Sentem o peso da responsabilidade? O nosso orçamento quadruplicou. É um justo reconhecimento pelo nosso trabalho abrangente, da ópera ao teatro, performances, artes visuais, dança, música, cinema. Criamos objectos artísticos singulares no panorama local e regional. Este apoio permite dar sustentabilidade à estrutura para termos mais recursos humanos e envolver mais artistas. Assegura estabilidade que normalmente as estruturas artísticas não têm.
É difícil ter uma companhia profissional sem o apoio do Governo? Sim. A precariedade que durante décadas os artistas têm sentido é dramática. A tentativa de criar um estatuto para profissionais das artes é o caminho. Eles são pessoas como as outras. Precisam de planear a sua vida com o mínimo de previsibilidade. Se lhes retirarmos isso eles passam mais tempo apavorados com o que se segue do que a dedicar-se à sua profissão. Espero que o Estado compreenda cada vez mais a especificidade deste sector, a importância dele para a economia e a importância que a cultura tem para afirmar o país no mundo.
Concorda com a subsídio-dependência destas estruturas? Não é subsídio-dependência, é um investimento. À volta da cultura existem empresas, pessoas e profissionais que fazem mexer a economia. A democratização do acesso à cultura e às artes está consagrado na constituição. É graças a esses apoios que podemos praticar preços dos bilhetes acessíveis. Ver uma ópera por sete euros só é possível porque o estado financia.
Então não é a cultura que é cara, são os ordenados que são baixos… Os ordenados serem baixos é transversal. A cultura é essencial à condição humana. Um país sem cultura nem artes e que não as ofereça à sua população é um país muito pobre. A cultura receber apenas 1% do Orçamento de Estado é um sinal de atraso. Para uma estrutura como a nossa o dinheiro nunca chega. Temos de fazer uma grande engenharia financeira para viabilizar os projectos. O apoio da câmara municipal é importante mas espero que possa aumentar no futuro.
VFX acaba por ser um concelho com grande dinâmica cultural. Tem uma diversidade cultural significativa. Mas podemos sempre fazer mais. Existe uma geração jovem que é profundamente diferente da nossa. Relacionam-se usando outros meios tecnológicos. Há trabalho a fazer para atrair esses jovens.
Temos de abandonar os écrans? Na pandemia foram lançados vários desafios para as companhias produzirem conteúdos para o streaming. Isso altera a relação entre o objecto artístico e o público. Só o fizemos uma vez com a “Barbearia Atómica” na Fábrica das Palavras e foi uma experiência interessante. Teve 20 espectadores, a ministra da Cultura era uma delas.
O director do Cegada, de Alverca, teceu a O MIRANTE um conjunto de críticas ao município e acusou o presidente da câmara de ter afinidades com algumas companhias. Sente-lhes as dores? Acreditamos que o trabalho fala por nós. A dedicação, o trabalho intenso e regular. A companhia de Alverca não está isolada nessa luta, existem outras a nível nacional que não foram financiadas. Compreendo que para uma estrutura em desenvolvimento isto seja um revés complicado. Sem o apoio do Estado torna-se extremamente difícil viabilizar uma estrutura profissional. Sobre as críticas e afinidades não faço ideia a que se referem.
É possível diferenciar o público de proximidade do que vem de Lisboa? Sim. Fazemos inquéritos para perceber e, muitas vezes, as pessoas dizem na bilheteira de onde vêm. Metade do nosso público é da Área Metropolitana de Lisboa, não do concelho de VFX.
A aposta nos autores e o trabalho cénico e dos textos faz a diferença nos vossos espectáculos... A irreverência e vontade de ter novas ideias está-nos no ADN. Queremos criar algo que não exista e não tenha sido testado. Não nos interessa replicar espectáculos ou modelos que já existam no concelho. Rompemos com a linguagem tradicional e apostamos na inovação, irreverência e lançar objectos que causem inquietação.
Ainda há quem desconheça o vosso trabalho. Têm consciência que precisam de melhorar a comunicação? É um desafio constante. Ficamos perplexos quando alguns residentes no concelho não conhecem o nosso projecto. Há quem prefira procurar em Lisboa a oferta cultural em vez de olhar para o concelho onde reside. A proximidade de Lisboa torna tudo mais complicado porque a oferta é esmagadora.
Onde vai buscar a inspiração para encenar e escrever? A inspiração vem sempre da poesia. É a partir dela que fazemos tudo. Está na génese de todo o nosso trabalho. Sou apaixonado por poesia e é o elemento inspirador que unifica tudo. A poesia é a matriz.
Desde 2006 que não escreve textos próprios para encenar. Ultrapassou a fase em que lhe apetecia escrever? Escrevi bastantes textos para teatro até essa data e depois, não sei explicar porquê, deixei de sentir necessidade de o fazer. Dediquei-me a visitar os clássicos e inspirar-me neles.
Sente-se mais um encenador, director, cineasta, do que um escritor de teatro… O meu trabalho foi-se tornando mais visual e musical. Menos textual. Inspiro-me em grandes textos que me servem de ponto de partida para a construção dos espectáculos.
Há muito de imaterial, impalpável, intangível, espiritual, filosófico e metafísico em muitos dos vossos espectáculos. Não é perigoso fazer teatro apostando no abstracto? Apaixonei-me pela linguagem teatral e por esta dimensão presencial. A presença do público, a repetição, a forma de nos confrontarmos com um espectáculo repetido mas sempre diferente. Existe geometria cinematográfica no meu trabalho. Muitas vezes estou a encenar mas a pensar em cinema. É essa a herança que tenho de toda a aprendizagem do cinema. Pensar um espectáculo ao nível do ritmo, do tempo, até dos planos que usamos. Sim, o abstracto é uma disciplina dos espectáculos que montamos e não há como negá-lo.
Está-se marimbando para o público? Não me estou a marimbar para o público, mas numa fase inicial da criação não podemos ficar preocupados com o que o público pensa. Só numa fase posterior quando estou a ultimar o objecto e a poli-lo. Aí sento-me e imagino o que será a experiência de assistir. Se o ritmo está certo, se tem clareza em alguns aspectos, etc. Não me posso sentir condicionado pela pressão do que o espectador vai achar. Isso reduz o meu leque de opções e a irreverência que coloco em algumas peças.
Alguma vez pensou produzir uma peça e vender a uma estação de TV? Já equacionámos essa possibilidade. Aconteceu no “O Corvo” do Edgar Allan Poe. É um projecto que não está esquecido mas todos sabemos como as televisões trabalham. Temos alguns espectáculos que por essa dimensão cinematográfica fariam sentido serem transmitidos.
A peça “She’s lost control” vai ser apresentada em Lisboa, em Dezembro. Tem temas tabu onde não mexa? Sexo, LGBT, por exemplo? Ou vale tudo na Inestética? Fizemos recentemente uma ópera de Baudelaire que era de uma temática que se enquadrava numa lógica LGBT. Eram poemas banidos do livro “As Flores do Mal”, proibidos pelos moralistas da época. Achámos esses poemas pertinentes, os chamados poemas condenados. Não imponho tabus mas não gosto de mau gosto. A estupidez incomoda-me profundamente. Um tema que seja estúpido pela sua natureza não me interessa. Todos os outros temas, que tenham a ver com os nossos dias e as realidades com que nos confrontamos podem ser abordados. Podemos é fazê-lo de forma mais subtil, metafórica ou mais directa. Não fazemos espectáculos de choque.
Não querem repetir o trabalho de Filipe La Féria de há 40 anos… Ele tentou afirmar-se dessa forma e só passou a ter muito público quando mudou a estratégia. Quando estava na Casa da Comédia fazia projectos mais experimentais. Nunca fomos um projecto que pretenda chocar as pessoas. A irreverência era dada por outra via, pela componente estética, visual e diferente do comum.
Mas há autores malditos nas vossas escolhas… As nossas escolhas não recaem sobre autores malditos. O universo autoral é vastíssimo. Senti necessidade de ir aos clássicos, a uma série de poetas que nos deixaram um legado impressionante. A história é cíclica. É baralhar e dar de novo. Ir buscar inspiração e revisitar com atenção uma série de autores clássicos é enriquecedor para a arte contemporânea. Já tudo foi inventado desde o tempo em que os gregos sistematizaram o texto teatral. Desde então temos sempre vindo a repetirmo-nos. Com um olhar diferente que tem a ver com o nosso contexto. Andamos sempre a dizer o mesmo.
Se os vossos espectadores não tiverem uma cultura média, alguns poemas, como os do espectáculo sobre Baudelaire, são de difícil entendimento. Ler Lobo Antunes é mais complicado do que ler José Rodrigues dos Santos. O leitor que compra o livro tem expectativas diferentes e terá de ter alguma cultura, um hábito de consumo literário. Mas temos surpreendido as pessoas. Alguns espectadores podem não ter descodificado na totalidade os poemas de Baudelaire, mas de certeza que extraíram uma experiência impactante do ponto de vista emocional. Os meus espectáculos têm muito de abstrato que devem ser preenchidos pelo espírito criador do espectador. A aparente falta de nitidez das coisas torna-as mais misteriosas.
A ideia é que seja uma noite para não esquecer… Tenho tentado sempre marcar o espectador de forma positiva. Que pelo menos as pessoas levem consigo um momento, mesmo fugaz, que as acompanhe o resto da vida. Se conseguir isso, que levem algo de marcante, alcancei o meu objectivo. Pela beleza da palavra dita e ouvida, o insólito, a bizarria...
Não era vantajoso para o grupo ter artistas da terra que trouxessem novos públicos? Uma companhia não pode viver só dessa estrutura familiar. Isso é uma lógica amadora. Uma estrutura profissional tem de se preocupar com a competência técnica e artística dos elementos que vai contratar. Se pensar num barítono para uma ópera eu tenho de contratar o melhor, não interessa de onde ele é.
O sonho de deixar uma fundação
Alexandre Lyra Leite tem 51 anos e é encenador, autor e um dos fundadores da Inestética. Estudou cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema e Produção e Gestão Teatral no Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral em Lisboa. O seu trabalho tem sido elogiado pelas abordagens multidisciplinares com dimensões poéticas e visuais. Já recebeu a medalha de mérito cultural da cidade de Vila Franca de Xira.
Hoje lidera um núcleo duro de quatro pessoas na Inestética, incluindo também Fernando Tavares, Rita Leite e Susana Serralha. Mas a companhia trabalha também com outra meia centena de profissionais, incluindo intérpretes, técnicos, figurinistas e compositores. Jorge Santos e Cristina Rodrigues Pereira são outros dois nomes que ainda hoje recorda com amizade pelo papel inicial na dinamização da Inestética. Na juventude assistiu a corridas de toiros mas afastou-se desse mundo.
Vive em Alhandra, terra que diz ser a mais bonita do concelho. Tira-o do sério a estupidez e o vermelho é a sua cor favorita por ser benfiquista. Tem um filho de 18 anos, e sonha deixar também como legado o projecto de uma fundação que dê continuidade ao trabalho da Inestética, uma estrutura para apoiar jovens artistas. Quando vê um espectáculo medíocre sofre até ao fim na esperança que o final o surpreenda. Gosta de uma noite bem dormida e uma festa com amigos.
Um dos espectáculos mais marcantes que viu foi “Alice”, de Robert Wilson, com música de Tom Waits. Elogia os espectáculos de Luís Miguel Cintra, da Cornucópia (uma das companhias que acabou por falta de apoio do Governo) como os melhores que já viu em Portugal.
Nunca mergulhou no Tejo. A primeira biblioteca que frequentou foi a de VFX e está hoje a ler um livro de fotografia de Jorge Molder. Elege Fernando Pessoa e Herberto Hélder como poetas de eleição destacando também o trabalho de artistas como Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e José Pedro Croft.
VFX precisa de um teatro municipal
Concorda com uma estrutura teatral municipal? Não sou a favor de uma companhia municipal porque nas últimas décadas esse modelo esgotou-se e a razão tem a ver com decisões políticas que podem influenciar as peças teatrais encenadas. Para bem da distância entre a criação artística e a gestão política as estruturas devem ser independentes. O Estado não pode decidir sobre o que a Inestética vai fazer. Diferente é a necessidade do concelho ter um teatro municipal, até 200 lugares. Poderia ser no teatro Salvador Marques em Alhandra. Importante era haver um espaço para que, com rotatividade, pudesse ser apresentado o trabalho dos diferentes agentes culturais do concelho e acolher outras companhias do país.
Já transmitiram a mensagem aos políticos? Sim. Uma das propostas que temos reiterado é a criação de cubos negros (“Black Boxes”) no concelho. Um a norte, outro a sul e outro na sede de concelho. Existem bons exemplos como a biblioteca de Marvila em Lisboa, que tem um auditório fabuloso, recolhe a bancada e fica um cubo negro para ensaios e criação artística. Em VFX isto permitiria abrir a porta a novos criadores da música, teatro e dança. Que fosse cedido de forma temporária a cada um desses criadores. Assim o concelho ia criar uma dinâmica ímpar ao nível de criadores emergentes e jovens criadores. Várias bandas jovens não têm espaço onde ensaiar. Vários bailarinos não têm onde se encontrar e fazer alguns ensaios. O mesmo acontecendo com actores. Esses cubos iam dinamizar o concelho de forma ímpar e iriam surgir novos projectos, uma renovação no tecido artístico do concelho..