O estrabismo estético, as pífias propostas de aumentos e o regresso às manifestações de rua em defesa do vinho
Corrosivo Serafim das Neves
Corrosivo Serafim das Neves
Na última vez que fui ao teatro, pareceu-me que a peça era péssima, o texto inenarrável e os actores medíocres, mas devo ter-me enganado porque, no final, o público aplaudiu de pé durante quase dez minutos.
E uns tempos antes, num concerto de música, devo ter-me enganado outra vez e redondamente. Eu a pensar que os músicos não acertavam uma nota e que os técnicos de som e de luzes metiam tanta água que havia o risco da plateia se afogar e, no final, os aplausos foram tamanhos, que os artistas tiveram que voltar ao palco umas 20 vezes e só os deixaram ir embora porque um benemérito qualquer, provavelmente com o mesmo mau gosto que eu, rebentou com o quadro eléctrico, em desespero.
Ando muito mal, como já percebeste, e até já marquei consultas numa carrada de especialistas. A comida dos restaurantes mais estrelados parece-me desenxabida; livros e filmes glorificados nas redes sociais e rotulados como os melhores de sempre parecem-me escritos com os pés; jogos de futebol anunciados como embates do século parecem-me partidas de solteiros coxos contra casados trôpegos. E até as mulheres que, na internet, geram milhões de babados cliques, me desmoralizam a libido quando se postam nas suas poses mais provocantes.
Estou doente da vista, dos ouvidos, da cabeça...de tudo. Não usufruir tanta beleza, tanto encanto, tanta arte, tanta maravilha, tanta nobilíssima literatura... está a dar cabo de mim. Estou num mundo de excelência, onde, com excepção do Governo, tudo é excelente, desde vinhos a médicos, professores, carros, peúgas, tofus, sumos de fruta, mecânicos, tradutores e técnicos de informática e eu, esteticamente estrábico.
Tenho acompanhado os jogos florais do Orçamento de Estado para o ano que vem e tenho dado o tempo por bem empregue. Aquilo anima-me e eleva a minha auto-estima. Há dias o Bloco de Esquerda propôs 15% de aumento para todos os profissionais do SNS. O Chega não se ficou e propôs 20%. Os sindicatos dos médicos já tinham proposto 30% mas só para os médicos. Eu, mesmo sem estar na Assembleia da República, nem ter a alma de comediante desta rapaziada, avanço desde já com uma proposta de aumentos de 100%... para arredondar as contas. Como diria a minha avó materna, se é para aumentar, que seja de cogulo, palavra que, provavelmente, os cómicos não conhecem.
Os desmancha prazeres da Organização Mundial de Saúde anunciaram que beber um copo de vinho à refeição não garante qualquer benefício para a saúde e que, pelo contrário, só a prejudica. Seja vinho ou qualquer outra bebida alcoólica. Fiquei doente só de ler aquilo. E mais doente fiquei quando li que já há países a meter rótulos nas garrafas, como nos maços de tabaco, a dizer que o álcool provoca o cancro e outras maleitas.
Lembrei-me logo das grandes manifestações que se fizeram em Lisboa a favor do vinho quando o Governo, aqui há uns largos anos, quis baixar a taxa máxima de alcoolemia para os condutores. Um dia destes temos que voltar à rua...ou adoptar um protesto mais moderno, pintando obras de arte com tinta cor de vinho e colando a boca às pipas da adega do Cartaxo, por exemplo.
Um abraço climático
Manuel Serra d’Aire