Opinião | 10-11-2023 12:45

Alice Pestana, aliás Caïel, a “santarena adormecida”

Alice Pestana, aliás Caïel, a “santarena adormecida”
Opinião: José Raimundo Noras

Este legado riquíssimo de Alice Pestana aflorado em muitos trabalhos académicos, não teve ainda biógrafo, romancista ou realizador, dispostos a “acordar a bela”, com mensagem de perene modernidade. Fortuito ou parte de mistério divino — fé ancestral tão alheia à própria — Santarém deve-se orgulhar de ser berço de Alice Pestana, aliás Caïel, ali mesmo na singela Travessa do Milagre.

Viagens episódicas, berço fortuito, as cidades cruzam-se connosco e nada nos dizem. Noutros casos, ficamos a fazer parte delas e elas de nós, mesmo sem ligação aparente umbilical. O acaso de nascer, de crescer ou, apenas passar por Santarém, marcou muitos, escribas, leitores e outros tantos.

José Saramago (1922-2010) — descrevendo a indiferença vital que grassa nestas paragens, — aqui metaforizava “a bela por acordar”, numa cidade sempre metida em si mesma, onde tudo ficava tão longe sem o ser. Sofia, por cá brevemente inspetora fiscal, dizia ser a “aldeia” um planalto deserto, rememorando a Coimbra, mais sua, quase nossa. Um século antes, entre os reputadíssimos intelectuais açorianos no leme da câmara municipal, conta-se o botânico Ruy Teles Palhinhas (1871-1957). Rapagão aqui terminou o liceu, aqui voltou já professor, aqui casou e daqui saiu, e essa fugaz presença, a caminho das estrelas, perdeu o encanto, perdeu a memória. Deixe-mo-lo sossegado, há outra bela a acordar, trazida à minha atenção por João Mendèz Fernandes, alfarrabista no Manuseado, cá no burgo.

Nasceu na Travessa do Milagre, a 7 de abril de 1860, filha de Eduardo Augusto Vilas Coelho (?-1893), empregado do governo civil, e de Matilde Laura Coelho Pestana (1832-1865), uma menina a que chamaram Alice no batismo (apesar, de não sei porquê, na wikipédia lhe querem mudar o nome). Cedou se viu orfã de mãe e separada da cidade berço, onde não sabemos se voltou algum dia. Apartou-se da transumância laboral do pai, rapidamente envolvido em nova família, e cresceu educada pela avó Epifânia Pereira Pestana (?-1886). A apetência pelas letras e apoios diversos evitaram o destino feminino nos serviços domésticos. Diplomada em escola inglesa, rapidamente a vamos a encontrar a escrever sobre os clássicos na língua britânica, a par de aulas, tutorias particulares e traduções. Tanto ou mais agitou as águas, que a vemos nomeada pelo governo, em 1893, para estudar a educação feminina no estrangeiro. Vertendo em texto de jornal o relatório oficial e usando essas experiências na sua ficção romanesca e infanto-juvenil.

Não nos parece que o seu pseudónimo masculino Eduardo Caïel tenha derivado da impossibilidade de publicar como mulher. Como Caïel – anagrama do próprio nome — assina sempre ficção, como Alice ensaios e crónicas. Assumindo que Caïel era a Alice, já em 1899, era proprietária de um periódico para crianças. Noutros, de grande tiragem, defendia a paz e a educação, num ideário republicano, feminista e laico.

Através de Bernardino Machado conheceu Francisco Giner de los Rios (1839-1915), e o discípulo Pedro Blanco Suárez (1869-1950), ambos ligado à Institución Libre de Enseñanza (ILE), escola de inspiração krausista defendendo um ensino livre e laico em todos os graus. Na aurora do “novo século”, casou-se com Pedro Blanco rumando a Madrid e à escola Libre Enseñazana. Veio em missão estudar as reformas republicanas portuguesas. Impressionou-a em particular a condição e as medidas em prol das crianças em reformatórios. Juntou-se a juristas defendo ao tempo a despenalização dos menores, mostrando aos poderes públicos o papel reabilitador da educação, vindo a trabalhar no Patronato del niño delincuente. Escreveu, traduziu, publicou a um ritmo regular até adoecer em 1925 e falecendo na véspera de natal de 1929.

Este legado riquíssimo de Alice Pestana aflorado em muitos trabalhos académicos, não teve ainda biógrafo, romancista ou realizador, dispostos a “acordar a bela”, com mensagem de perene modernidade. Fortuito ou parte de mistério divino — fé ancestral tão alheia à própria — Santarém deve-se orgulhar de ser berço de Alice Pestana, aliás Caïel, ali mesmo na singela Travessa do Milagre.

Referências:

Arquivo Distrital de Santarém (ADSTR), “Registo de batismo de Alice Pestana”, 22/07/1860, Livro dos registos de batismo 1850 a 1861, fls. 118-118v, Registos Paroquiais/Santarém/Marvila/B1, PT/ADSTR/PRQ/PSTR12/001/0001, [disponível em linha em: https://digitarq.adstr.arquivos.pt/viewer?id=1004958, imagens 0237 e 0238].

Alice Pestana 1860-1929: In Memoriam. Madrid, Imp. de D. Julio Cosamo, 1930, [disponível em linha em: https://purl.pt/39365].

Hernández Díaz, José María — “Alice Pestana, educadora portuguesa republicana en la Institución Libre de Enseñanza”, Historia de la educación: Revista interuniversitaria,n.º 31, 2012, págs. 257-273, ISSN-e 2386-3846, ISSN 0212-0267, [disponível em linha em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4091624]

“Alice Pestana”, em Wikipédia [versão portuguesa], Wikimediam Foundation, disponível em linha em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Pestana, [consultado a 13/09/2023].

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