Opinião | 07-12-2023 07:00

Quantos caminhos percorreu Santo Agostinho até se tornar Santo Agostinho?

A arte da política é a mentira, mas o que resta para além da mentira é muito importante para que possamos sobreviver ao fanatismo, ao poder dos que acham que tudo tem um preço, aos jumentos que ganham eleições e por isso acham que passam de burros para cavalos só por aprenderem rapidamente a relinchar.

Há um lugar à beira do Tejo entre Alpiarça e Chamusca onde a água beija a margem e os ramos dos salgueiros caem como um chuveiro na enseada. O areal parece ter escapado à poluição dos esgotos e das indústrias a montante, e ali nota-se menos a cor do petróleo na água, que é a marca da fábrica do Caima que despeja no rio as águas das suas ETAR’s.
Este Verão não fui lá. Fiquei mais a sul onde descobri outro areal fabuloso e uma maracha onde dá para uma pessoa se esconder do mundo sabendo que basta deitar a cabeça de fora e ficamos a um passo da civilização. O Ribatejo deve ser o território mais privilegiado do país embora não tenha pena dos portugueses que vivem por perto de outros rios famosos como o Douro, que tem afluentes que proporcionam as melhores praias fluviais onde já mergulhei.
Não conheço o país como gostava, mas espero ainda ter tempo para me meter ao caminho. Tenho em lista de espera a releitura de Viagem a Portugal, de José Saramago, e dois livros de autores diferentes que percorreram o país de mota e contam quase tudo. Vou seguir só o que me interessa e certamente vou ficar muito mais tempo no interior que no litoral. Para mim é mais importante ficar uma hora a observar uma paisagem que umas ruínas mesmo que sejam romanas. Gosto de falar com as pedras, mas é sobre o presente. O que as pedras nos têm a dizer sobre o passado pouco me interessa, deixo isso para outros matarem a cabeça.


Tenho visto pouca televisão, mas pedi para gravarem o documentário sobre a Estrada 40 na Patagónia; e pouco mais. Vi as lágrimas de António Costa no Facebook e só me comoveram porque acho que foram um sinal de fraqueza. Não há nada mais fingido que uma plateia a bater palmas. Sei isso do teatro: muitas vezes bato palmas só pelo esforço e arte dos actores, mais do que por ter gostado da peça. António Costa teve razões para chorar muitas vezes ao longo dos seus mandatos como primeiro-ministro, mas foi chorar naquele que só tinha o som das palmas. A política tem destas virtudes; um homem escorrega nas emoções quando menos espera.
A política é uma escola de vida das mais difíceis que muitas vezes cai no colo dos mais ineptos e destituídos. Uma vez soube que António Costa foi a correr a uma iniciativa onde não podia faltar, mas cumpriu os seus 10 minutos prometidos; outra vez estava a conversar com um secretário de Estado de Durão Barroso e fiquei a falar sozinho porque o telefone tocou e o meu interlocutor estava proibido de atender chamadas do chefe junto a testemunhas. O membro de um Governo que mais quis falar comigo no seu gabinete para me roubar calhandrices do meu trabalho como dirigente associativo foi aquele que mais me traiu e passou a perna. Aprendi ao longo destes 36 anos de trabalho como jornalista/editor que não há político do PS ou do PSD que, quando os governos alternam, desfaçam as asneiras que tanto criticaram enquanto oposição. Parece que são todos da mesma família e comem todos do mesmo tacho. E não me parece que algo tenha mudado nos últimos anos. O Governo de Passos Coelho criou uma lei que obrigava os beneficiários do PRR a publicarem nos jornais a aprovação das candidaturas. Ao fim de quatro anos, à falta de associação que represente condignamente as empresas editoras, paguei a um escritório de advogados para escrever à actual Provedora de Justiça a exigir que se cumprisse a lei. A resposta foi um chuto no cu apesar de nos ter dado razão. Meses depois o Governo de António Costa revogou o decreto lei e acabou com a obrigatoriedade… que nunca foi cumprida. Uma vez abordei um ministro da pasta da Comunicação Social num balneário de um ginásio e ele respondeu-me com todas as letras: porra, nem aqui deixas de me chatear. A verdade é que ele nesse ano beneficiou os jornais de um certo grupo empresarial e não queria admitir. Até que deu a mão à palmatória.
Ser discreto e ter mais que fazer que andar em tertúlias a ouvir conversas da treta faz-me saber mais de política do que muitos que andam na política. Saber guardar segredos também me favorece. A arte da política é a mentira, mas o que resta para além da mentira é muito importante para que possamos sobreviver ao fanatismo, ao poder dos que acham que tudo tem um preço, aos jumentos que ganham eleições e por isso acham que passam de burros para cavalos só por aprenderem rapidamente a relinchar. Sou cada vez mais feliz por perceber que escolhi o caminho certo e cada vez mais infeliz por ver tanta gente a cheirar mal, tão habituados ao cheiro da merda que nem se estranham quando cheiram a esgoto.


Na minha última viagem deixei pelo caminho um livrinho de Mary Oliver que me acompanhou em várias viagens. Deixei-o em boas mãos embora admita que nunca mais vou voltar a ver a pessoa assim como não voltarei a ver os chineses para quem cantei o fado à capela na Ilha de Páscoa quando ainda tinha cabelos na cabeça e barba sem cabelos brancos. O livro tem um poema curto que já está gravado na minha cabeça há muitos anos. "As coisas levam o seu tempo. Não te preocupes. Quantos caminhos percorreu Santo Agostinho até se tornar Santo Agostinho?". JAE.

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