Opinião | 21-12-2023 07:00

Viver a vida como uma prenda de Natal

Não gosto do Natal mas gosto do espírito de Natal. Por isso fica aqui a minha história de Natal, embora um pouco triste, embora um pouco envergonhada.

Não gosto da quadra festiva que estamos a atravessar e não é para contrariar nem para me fazer difícil. Não gosto mesmo, sinto que é nesta altura que somos mais hipócritas, que valemos menos por esquecermos os velhos nos lares, por não sermos solidários com um vizinho com problemas de saúde, por não aceitarmos uma buzinadela de um carro sem dizermos uma asneira, por não darmos o lugar na fila a uma pessoa mais velha, entre tantas coisas em que somos maus cidadãos e achamos sempre que a culpa disto tudo estar como está não é nossa, mas dos outros. Por isso não dou nem recebo prendas, com as devidas excepções que ninguém pode negar à família e alguns amigos. Aliás, aprendi muito com a família que ajudei a formar a ser menos radical nestas coisas das tradições, mas não cedi em tudo.


Tenho uma história de Natal para contar aos leitores desta coluna que na última semana fizeram do meu texto um dos mais lidos na Internet, sem que o mérito seja meu, uma vez que escrevi sobre a aberração dos homens escolhidos para indicarem o melhor local para o novo aeroporto de Lisboa, e, depois de fazerem o seu trabalho, bem pago por sinal, vieram para a comunicação social dizer disparates como se estivessem a falar em nome de um partido político ou de interesses privados.
O antigo director do jornal do Fundão, António Paulouro, contou-me um dia, já lá vão quase 40 anos, que o jornal tinha uma assinante que não sabia ler. As fotos do jornal chegavam para ela se informar sobre o que mais lhe interessava, que eram as fotos dos artigos e as dos mortos da sua freguesia. Era noutro tempo, em que uma pessoa era notícia pelo menos uma vez na vida, que era quando morria. Com o advento da Internet, e a extinção dos jornais locais, as funerárias adoptaram as redes sociais para pouparem dinheiro e para fugirem ao trabalho e a uma responsabilidade social que também lhe cabe.
Um dia destes fui consultar as páginas de algumas funerárias e dei pela morte de pessoas que me eram queridas e de quem tenho saudades. Não chorei porque não tenho lágrima fácil, mas fiquei triste com a morte do João Maria Laranjinha, que nos meus tempos de adolescente ensinou-me que até para temperar uma salada é preciso ter boa mão no azeite, no sal e no vinagre; e soube da morte do Luís Godinho, que era a personagem que melhor sabia contar as histórias da sua terra que envolviam as personagens mais carismáticas.
Não posso escrever sobre todos os que reconheci nas fotos das funerárias, e por quem tinha estima e admiração, porque o espaço não chega, mas vou até ao fim da página a lembrar com saudade a Maria de Lourdes Ribeiro, com quem conversei muito no lar da Misericórdia; Manuel Barriga, que era um homem quase exemplar; Elisa Simões, conhecida como a Elisa dos bolos; Maria Piedade Cardador, mulher do Duarte Malaquias, que me ensinou alguns truques sobre como sobreviver num meio pequeno e de muita gente tacanha; Maria Alice Almeida, que durante mais de quatro décadas foi funcionária na escola da Chamusca; Eugénio Vaz, o homem das bombas de gasolina e das podas; Acácio Araújo, um filósofo que nunca exerceu a profissão; Maria Luísa Pestana, a mãe do Tó e da Ana Maria, que embora não sejam meus amigos são do meu tempo; Joaquim Vacas de Jesus, que foi meu companheiro nas manifestações de rua a seguir ao 25 de Abril; Francisco de Almeida Redol; Maria da Glória Cláudio, esposa do ainda meu respeitado amigo Joaquim Cláudio; Maria Emília Nalha e Manuel João Nalha, que ainda eram da minha família e que me recordavam sempre a sua mãe Leonor Nalha, de quem guardo recordações de muita ternura; Celestina Albino e Gonçalo Melrinho, um rapaz a quem dei muitos rebuçados e que teve uma vida difícil que só sabe avaliar quem sabe o que é o verdadeiro espírito de Natal, sem prendas e a trabalhar para ajudar quem não tem uma lareira para se aquecer. JAE.

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