O mito da “utilização pacífica” da energia nuclear
O texto apresentado a seguir integra um outro muito mais extenso em que se analisa a oposição à energia nuclear civil em vários países do mundo (EUA, França, Alemanha, Suécia, Espanha, Áustria, Itália, Suíça, Portugal), o que conduziu ao impasse desta forma de energia a que se vem assistindo desde os anos 70 e 80 do Século XX.
Trata-se de uma matéria nunca abordada com esta abrangência na bibliografia internacional. E é a continuação de um texto já aqui publicado com o mesmo título. O autor do texto colheu durante anos informação sobre o assunto em revistas de energia nuclear, algumas das quais não se eximiam a publicar os acidentes, as avarias, as dificuldades e erros tecnológicos, a substituição de partes fundamentais e de elevado custo dos reactores, além das acções de oposição às centrais nucleares. Na parte agora apresentada, examina-se a ligação estreita entre o nuclear militar e o nuclear civil.(continuação)
Depois de no texto anterior se ter iniciado a análise da estreita ligação entre o nuclear militar e o nuclear civil para produção de energia eléctrica nos EUA, União Soviética, Reino Unido e França, referindo o Tratado de Não Proliferação Nuclear com muitos incumprimentos, aborda-se agora os caso menos conhecidos da Índia, Argentina, Brasil e Irão.
O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e outros não impediram que Índia, Paquistão, Israel, Coreia do Norte e outros países que já não as possuem (?) – Bielorússia, Cazaquistão, Ucrânia e África do Sul - conseguissem fabricar ou apenas possuir bombas atómicas e de hidrogénio. A Índia, que possui desde há muito uma escola notável de físicos, conseguiu mesmo construir um tipo de reactor nuclear desenvolvido pelo Canadá, a urãnio natural, arrefecido a água pesada, o reactor designado por CANDU. Sabem os técnicos de energia nuclear que este tipo de reactor, cuja tecnologia é mais fácil de absorver por um país de menor nível científico e tecnológico, facilita, ao mesmo tempo, a utilização do plutónio para a produção de armamento.
Claro que a Índia enveredou por este caminho para poder possuir a arma nuclear, que a sua vizinha e grande rival geoestratégica China já possuía há muito. E o Paquistão seguiu o mesmo caminho na rivalidade com a Índia e, por isso, também usou a via CANDU. Aliás, a China é hoje um dos países que aposta forte neste tipo de energia.
A propósito, convém recordar que a Argentina - que desde os anos 50 vinha tentando incorporar a ciência nuclear -, após os golpes militares de 1963 e, em especial do regime militar de 1966-1973, dirigido sucessivamente pelos conhecidos generais Ongania, Levingston e Lanusse -, enveredou pela construção da central nuclear de Atucha, arrancando com a construção de um grupo nuclear em 1968 e concluído em 1974. É transparente, atendendo ao que aqui foi escrito atrás, por que razão o regime avançou em 1974 com a construção do grupo nuclear CANDU de Embalse. Na vigência da ditadura militar de 1976-1983, com os generais Videla até 1981 e, depois, Viola, Galtieri e Bignone, no decorrer da qual terão sido assassinados 30.000 argentinos, foi decidida a construção do grupo 2 da central de Atucha, iniciada em 1981.
Ora, lembrando a rivalidade entre a Argentina e o Brasil, que vinha dos Séc. XVII e XVIII entre os impérios coloniais português e espanhol, de que resultaram várias duras guerras durante o Séc. XIX, percebe-se que o regime militar brasileiro implantado em 1964, e que durou até 1985, tenha ficado preocupado com o possível acesso da Argentina às armas nucleares e tenha decidido construir uma central nuclear no Brasil, a de Angra, perto do Rio de Janeiro, iniciando-se a construção de um primeiro grupo em 1971, concluído em 1982 e um segundo grupo iniciado em 1976 e só concluído em 2000.
Assim, também não espanta que o Irão, grande país produtor de petróleo, muito antes de as alterações climáticas estarem na ordem do dia, ter enveredado pela “utilização pacífica “ da energia nuclear. A não ser por razões militares, não se compreende que um grande produtor de petróleo queira enveredar pela energia nuclear civil.
Como se vê a “utilização pacífica” da energia nuclear esteve sempre associada ao armamento nuclear e os países sem pretensões hegemónicas geoestratégicas foram sendo arrastados pelas potências hegemónicas para a construção de centrais para produção de energia eléctrica, pois os programas nucleares “pacíficos” daqueles primeiros países não eram suficientes para garantir a economicidade dos investimentos realizados nas unidades industriais ou empresas de produção de equipamentos, nomeadamente os reactores. São bem conhecidas as diligências das empresas dos EUA e do governo francês em várias latitudes para conseguir convencer governos a construírem grupos nucleares. Nuns casos, os países que podemos chamar “fundadores” conseguiram impor a outros da sua esfera de influência a opção nuclear na produção de energia eléctrica. Quase sempre, acompanhando o fornecimento do equipamento com o “apoio” científico, técnico, e, principalmente, financeiro através de um banco, num projecto que é sempre de muito elevado montante.
Chegaram mesmo a ser denunciadas acções de corrupção de ministros, tendo sido muito falado o caso de um país do Oriente. É conhecido dos técnicos que trabalhavam com orçamentos de grupos nucleares, fornecidos por empresas de equipamento ou por empresas de consultores, necessários nos estudos de planeamento dos sistemas electroprodutores – incluindo o português, em que o autor do presente texto participou em toda a sua vida profissional, de 1968 a 2008 - que esses orçamentos incluíam sempre uma rúbrica de “Imprevistos” num montante que podia atingir 10%. Esse montante correspondia em parte a possíveis verdadeiros imprevistos, mas sabia-se que contemplava também o pagamento de “luvas”.
Além disso, também é muito conhecido o caso do governo francês na América Latina, implementando programas de “cooperação científica”, mas cujo propósito era procurar convencer os países a encomendar grupos nucleares à então fabricante francesa de reactores, a Framatome, urgentemente necessitada de encomendas, porque o programa nuclear francês não era suficiente para garantir a sua rendibilidade. Portugal também foi sujeito a pressões no governo de Mário Soares dos anos 80, tanto por parte dos franceses (pelo próprio Miterrand), como dos alemães.
Por outro lado, muitos dos países que enveredaram pela via nuclear civil por estratégia nuclear própria ou por imposição dos países que dominavam o respectivo espaço geoestratégico, não tinham regimes democráticos, onde a imprensa livre pudesse debater a questão nuclear. Podemos recordar, entre os primeiros a União Soviética e a China e, entre os segundos, todos os países do Pacto de Varsóvia, a Turquia, o Irão, o Paquistão, os Emiratos Árabes Unidos. Os ex-países do Pacto de Varsóvia, hoje em maioria na União Europeia, são os que mais desejam continuar os programas nucleares, pois as suas populações não só não têm tradição no debate do assunto, como as suas democracias e a sua liberdade de imprensa são muito imperfeitas e condicionadas por novos interesses.
Não só os autores do referido texto publicado pela Ordem dos Engenheiros escamoteiam que, historicamente, não foram os EUA os primeiros a construir um reactor nuclear a produzir energia eléctrica para fornecimento à população, como adoçam a pílula da declaração de Eisenhower e, por arrastamento, a de outros dirigentes mundiais, como os soviéticos e alguns europeus.