Opinião | 08-02-2024 07:00

André Seffrin: o escritor, critico e editor que ainda organiza tertúlias na sua casa

André Seffrin: o escritor, critico e editor que ainda organiza tertúlias na sua casa
OPINIÃO: JAE
André Seffrin

André Seffrin é crítico literário e de artes plásticas, editor, ensaísta, faz de tudo e mais umas botas se lhe pedirem para organizar um livro ou valorizar um autor; e deve ser o único homem ligado às artes que ainda se dá ao trabalho de convidar os seus amigos para tertúlias na sua casa.

Há cerca de três dezenas de anos levaram-me no início da noite, a medo, porque eu era novo nestas andanças e podia sair-me mal, para o bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, para casa de um escritor, crítico literário e editor que habitualmente promovia tertúlias convidando gente do mesmo ofício.
Chama-se André Seffrin e ainda hoje é meu amigo e eu sou visita de sua casa como aconteceu recentemente.
Esta última estadia no Rio de Janeiro, o último dia de tertúlia com o André e a sua família, deram-se balanço para escrever este texto e provavelmente surpreender os meus leitores. Sou assumidamente um suicida tanto no convívio familiar como no trabalho e nos meus encargos com as coisas do corpo e do espírito. Nunca faço nada pela metade e se o faço é por razões da minha falta de inteligência ou força física. O eu que sou nunca me dá descanso nem a dormir. Sonho todas as noites e é raro que não goste dos meus sonhos. No meu dia a dia estou sempre a inventar mesmo depois de já ter passado os 68 anos e o meu coração ter reclamado dentro do peito. Sou incapaz de viajar para Cabo Verde, Brasil, França, Espanha, Chile ou Argentina, talvez os países que mais gosto, sem levar comigo o trabalho, os textos literários inacabados, uma pilha de livros, uma agenda de pequenos biscates que sei que posso resolver entre o café da manhã e o descanso num banco de jardim, a meio de um mergulho no mar, depois de uma sesta, enquanto dou uma mordidela numa nuvem ou engulo um bando de aves raras que me levam o que resta do cabelo que ainda tenho na cabeça.

Conversar a ouvir fado e MPB

O André Seffrin é jornalista cultural tal como eu também gostava de ser. Mas somos tão diferentes um do outro que nos entendemos às mil maravilhas. Dantes durante uma noite de convívio, só à minha parte despejava dois litros de vinho entre as 7 da tarde e as 6 da madrugada; quando era cerveja nunca soube bem quantos litros bebia. Agora estou mais moderado e bebo mais água que vinho ou cerveja. Ele não. Continua em forma. A beber e a escrever. André Seffrin é daqueles escribas que gosta do que faz. Detesta assinar os seus textos e com 58 anos de vida discursou poucas vezes e já não aceita subir a uma tribuna para botar faladura. O que ele mais gosta é de trabalhar para editores que não querem textos assinados para as contracapas dos livros, as badanas ou para outra qualquer valorização do livro feito por quem vive e trabalha de ler e julgar o que os outros escrevem.
Nesta última vez que tertuliamos tivemos tempo de ver na televisão a gravação completa do Festival da Cancão Brasileira de 1966. Antes disso ouvimos a Marisa e a Amália a cantar o fado. Nunca na minha vida, na minha casa, liguei a televisão para ouvir fados ou fadistas, e muito menos espetáculos tão antigos, do tempo da Maria Cachucha. Quando saí da casa do André Seffrin e desci a rua Mário Portela, eram cerca de três da matina, disse para mim mesmo: preciso disto mais vezes para não morrer dentro de um carro de Fórmula1 sem saber se sou piloto ou copiloto suicida. Mesmo enquanto os artistas brasileiros famosos da época cantavam as canções que ainda hoje marcam a MPB brasileira, não deixamos de falar do Lêdo Ivo, do António Torres, da poesia do Alexei Bueno, dos diários inéditos do Walmir Ayala, da pintura do Gonçalo Ivo, da equipa do Fluminense, jogo que também vimos na íntegra, que nessa noite jogava em Saquarema, onde tínhamos passado uns dias antes, ele na sua casa de férias e eu numa Pousada onde fui reviver outros tempos. Falamos ainda da antologia de poesia erótica que haveremos de reunir a quatro mãos, das Obras de Octávio de Faria e do Baú de Ossos de Pedro Nava, que o André disse para não comprar que ia trazer um exemplar de Saquarema.

Os livros como uma obrigação

André Seffrin não é maldizente como eu; não é tão cruel como eu a julgar pessoas, mas que ninguém o julgue só pelo que parece. Tem um humor fino e mortífero, ao contrário do meu, que só tem bala para atordoar.
Alguns dos melhores livros que ele leu, eu também já li depois de nos conhecermos. Nisso continuo igual ao que era aos 20 anos. Lia quase tudo o que eram sugestões de leitura do Manuel Alegre, do Baptista Bastos, do David Mourão Ferreira, Jorge de Sena, Piteira Santos, entre tantos outros que correspondiam aos pedidos dos jornais em tempos de feiras do livro ou de listagens de fim de ano. Embora esteja velho e cansado, não perco a mania de procurar os livros que, antes de morrer, tenho obrigação de ler. Diz-se que o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, o autor de Fausto, chamou um padre minutos antes de morrer para se confessar. “Padre, confesso que vou morrer sem ter lido a Divina Comédia. É pecado”, perguntou. Só quem vive entre livros, viagens e fantasias percebe que há livros que até na hora da morte devem ser boa companhia. Nem que seja para os renegar. E tal como dizia Sócrates, horas antes de morrer questionado pelos seus discípulos sobre a razão porque não tirava os olhos de um livro, se a morte estava por breves horas, “devemos aprender até morrer”.

Escrever por favor e de borla

Nesta última tertúlia o André confessou que quando chegou ao Rio de Janeiro vindo do sul, assistiu a muitas conversas do Walmir Ayala com músicos, escritores e artísticas plásticos da época, mas só guarda de memória o ambiente, nunca pensou em tirar apontamentos, sequer imaginava que a sua vida ir ser ler e escrever até morrer.
Quando conto as vezes que estivemos juntos, e os episódios que já vivemos, e as histórias que nunca irei contar desses encontros, porque me falta já o pormenor, fico danado e ainda mais suicida do que acho que merecia. A matéria de trabalho de um jornalista é a memória; quando a memória se vai são os apontamentos a que podemos recorrer que nos salvam a vida, ou seja, que nos dão material de trabalho para adiarmos a morte cerebral, doença que persegue qualquer pessoa que vive da arte da escrita, da música ou de qualquer outra actividade intelectual.

Muitos dos amigos e amigas de há cerca de 30 anos que se juntavam a nós em tertúlia, já morreram e desses ainda reza a história, embora não sejam para aqui chamados. O André tem mais opinião literária dos amigos e conhecidos do que sobre eles próprios. Por isso quando fala dos grandes nomes da literatura brasileira que conheceu, e sobre quem escreveu, é como se falasse de família, de gente com quem bebeu um copo e trocou umas ideias sobre o assunto.
Embora tenha trabalhado para dezenas de editoras, poucas vezes o fez como funcionário. André Seffrin é dos poucos escritores do mundo que aceita viver no fio da navalha para fazer só o que gosta. Por isso admite que raramente escreve por favor e muito menos de borla. A escrita é o seu trabalho, e escrever exige tempo de estudo e, mais ainda, de habilidade intelectual que para pôr em prática é preciso fazer muitos abdominais e saltos mortais.
Quem quer prefácios do André Seffrin não fica a chuchar no dedo mas tem que merecê-lo.


O Demónio da Inquietude

É minha convicção que os escritores vivem da abundância da sua memória, por isso leem muito, colecionam grandes bibliotecas, são regra geral ratos de sebos, interessam-se desalmadamente por jornais e revistas, notícias sobre tudo o que mexe no mundo das artes, da política e de sociedade, raramente sobre economia.
Recentemente perguntei ao autor de “O Demónio da Inquietude“, quem, depois de Carlos Drummond de Andrade, a quem chamou o Camões do nosso tempo, podíamos nomear seu herdeiro no Brasil. A pergunta complementava um desabado recente sobre a poesia que se publica actualmente. Não vejo ninguém, desabafou o mais arguto dos críticos brasileiros, mas também o menos cruel, eventualmente o mais afetivo dos escrutinadores da literatura brasileira dos últimos anos.
André Seffrin conviveu desde muito cedo com Walmir Ayala. Quando chegou ao Rio de Janeiro com 21 anos, e começou a conviver com Ayala e os seus amigos e conhecidos, tudo gente ligada às artes e às letras, André Seffrin fez-se crítico literário encantado pelas possibilidades de ser visitado pelas musas, ao contrário dos seus interlocutores que não faziam mais nada que andar no seu encalço, muitas vezes com a ajuda da bebida, do fumo e de algumas loucuras inomináveis.

A minha memória está povoada de artistas que nunca precisaram de procurar trabalho: encadernadores, correeiros, alfaiates, marceneiros, jardineiros, torneiros, canalizadores, entre muitas outras profissões. O trabalho chegava porque eles eram únicos, já tinham sido aprendizes, herdaram a profissão dos seus mestres, mas também as oficinas e os clientes dedicados. André Seffrin lembra-me os mestres da arte e da vida que tenho como referências. Nunca o ouvi fazer queixinhas do trabalho ou de alguma desfeita, jamais o ouvi clamar por justiça como fazem as vedetas e como se houvesse justiça para quem trabalha por sua conta. Fizeram dele guardião de uma grande biblioteca e de um grande autor, e ele não enjeita esforços para continuar a valorizar quem nele confiou.

O desejo de ser dono de editora

O que guardo dos seus segredos de escritor e editor profissional são episódios de falta de tesouraria, e o recurso à venda de revistas e jornais antigos que lhe serviram de material de trabalho por valores que deram para sobreviver durante dois anos. Mas também ouvi contar que gastou num só livro, que queria ter na biblioteca, o valor de um cordão de ouro.

No ano em que se comemoram os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, comemorações que estão longe de terem a dignidade que merecem, por culpa dos políticos analfabetos, Isabel Rio Novo vai publicar uma biografia do poeta que lhe consumiu seis anos de trabalho. Ao contrário dos políticos, os editores ainda arriscam. E os biógrafos fazem jus à sua profissão, trabalhando por pouco mas semeando em terra boa, esperando pela hora da colheita. André Seffrin trabalha como um poeta mas recebe como um biógrafo; esforça-se como um romancista mas é pago como revisor de texto. O seu sonho era fundar uma editora, e não trabalhar só para os editores, mas para isso precisava de duas vidas, pois é como escritor que sabe ganhar o pão para a boca. E um crítico também precisa de dormir e descansar e não tem que ser nem pode ser homem de negócios a tempo inteiro, que é o que são os editores que arriscam pedir uma biografia sobre um poeta, que morreu há 500 anos, e que terá sido enterrado em vala comum, embrulhado num lençol, numa data que nunca se irá saber ao certo.

O escritor que a vaidade não perturba

André Seffrin guarda livros como um médico guarda amostras de medicamentos. O último livro que me ofereceu andava na minha lista de compras há mais de 10 anos e foi-me sugerido por uma amiga do Porto que tem um fraquinho por Rodin e Rainer Maria Rilke. O segundo foi secretário do primeiro e escreveu uma pequena biografia que é uma preciosidade. André Seffrin, tal como Rodin, amadureceu enclausurado na sua oficina, escondendo-se do público que o lia, dos artistas que precisavam dele, dos editores com quem tratava só de forma profissional, falando pouco e poucas vezes.
A segurança da sua escrita foi conquistada em silêncio, sem deslumbramentos, sem se deixar perturbar pelos elogios, sabendo de outras vidas que a grande segurança de um escritor é a sua independência.
André Seffrin é um daqueles escritores em que todos podem bater, o que não é o caso, mas que nenhum elogio o desconcerta ou perturba.
O crítico de mão implacável, sem ser carrasco, já escreveu sobre centenas de escritores, artistas plásticos e ensaístas. Só recentemente reuniu em livro alguns, poucos, desses textos que ajudaram alguns autores a deixarem de duvidar de si mesmos e dos seus recursos literários.
JAE

Nota de interesses; “O Demónio da Inquietude” é uma edição portuguesa da editora Rosmaninho, uma chancela de O MIRANTE, que está em todas as livrarias portuguesas. O livro tem uma folha de rosto com a seguinte epígrafe que abre a secção de Poetas Brasileiros: “…essa estranha terra natal chamada língua portuguesa. Augusto Meyer, A forma secreta / “Epístola a Porfírio”.
Embora tenha sido eu o editor, o livro vai-se lendo e relendo aos trancos e barrancos, e de vez em quando falha a memória sobre um autor que faz parte do livro, sobre um texto que volta a ser tema de conversa. Só a epígrafe fica, porque no Brasil há sangue português até nas raízes das árvores.
Graças ao André, ou por causa da amizade com o André, editei no Brasil, também com a Rosmaninho "Rio, da Glória à Piedade", um livro de crónicas e memórias de homenagem ao Rio de Janeiro, escrito por um colectivo de autores em que também estou incluído. Recentemente André Seffrin organizou para a Editora Nova Fronteira uma reedição de uma Antologia de Poemas de Amor, trabalho iniciado há muitos anos por Walmir Ayala, e fez o favor de me incluir, embora eu não o merecesse.

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