Opinião | 26-03-2024 18:55

Um biógrafo construído – à guisa de recensão de «A. Montez um percurso secular” de Luís Duarte Melo

Um biógrafo construído – à guisa de recensão de «A. Montez um percurso secular” de Luís Duarte Melo

O decano e mestre da biografia brasileira Ruy Castro escreveu - com arrogância dos adolescentes - “que nem todos os avós dão biografias” e, em suma, “não se devem biografar parentes”. Luís Melo neste trabalho e, em particular no seu livro mais recente, o qual deixamos para outra crónica, demonstra exatamente o contrário.

Deve o escriba razões por uma ausência demorada. Será preguiça? Procrastinação? O. Tempo é inclemente. Neste jornal, depois vertida em livro pela mesma chancela, uma crónica de José Miguel Noras reproduziu poema gongórico sobre as contas que Deus nos pede do tempo, «se se gasta sem tempo tanta conta», maior serão os penhores a amigos e a leitores, e mormente a quem nos traz a oportunidade de com eles comunicar. Voltemos pois à carga, procurando imprimir ritmo regular a esta crónicas “sob a figura de gente”, recusando, tal como José Relvas, qualquer desculpa por falhas próprias.

Se o nosso propósito fosse académico, deveríamos começar pela resenha da bibliografia sobre o tema, pela análise curta das teorias da biografia, pela evocação do contacto fortuito com o professor Mark Gamsa da Universidade de Telavive, em Budapeste, resultante em troca de artigos e de ideias de como biografar uma pessoa enquanto se biografava uma cidade.

Se Port Arthur não é Alcanede nem é Lisboa, o comerciante, desportista, caçador e, sobretudo, espingardeiro António Montez (1885- 1969) cruzou um século e dois lugares. De facto, antes de ler já tinha lido a breve passagem do biografado por Santarém, porém são sobretudo a Lisboa do fim de século - na qual a monarquia se diluía na promessa de uma república encarnando as esperanças coletivas de progresso - e uma serra refúgio não alheia a inovações, tecnologias e algum cosmopolitismo, representada por Alcanede, a estarem omnipresentes neste livro onde todo o “curto século XX” se cruza com o protagonista e convoca temas bem atuais, a propósito dos 120 anos da Espingardaria Central. Trata-se da loja que A. Montez virá “a tomar” na sequência sempre almejada do ideal liberal do caixeiro que se faz patrão, do empresário potencial em todo o cidadão, que o “terceiro liberalismo”, na interpretação de Joaquim Veríssimo Serrão, pretendeu concretizar na sua melhor plenitude com dita I República. A vida de A. Montez abarca três regimes políticos, duas guerras mundiais e sucessivas transformações tecnológicas no que veio a ser o seu setor de atividade fundamental: a venda de armas.

Da experiência da monografia, Luís Duarte Melo propõe-nos uma biografia total, sincrónica e de capítulos temáticos, cruzando em três partes a narrativa do biografado com a da sua loja, mas sobretudo com a história de Portugal. Para isso recorreu a inéditas fontes primária do Arquivo Histórico da Família Montez (AHFM) - pelo próprio organizado laboriosamente de forma profissional e passível de utilização por quaisquer investigadores(as) futuros - cruzou-as com periódicos, visões distintas, bibliografia de referência. Assumiu-se aqui como biógrafo construído, no que parafraseando Vasco Pulido Valente, “é um livro de história”. É biografia feita por um historiador, diferente de trabalho jornalístico e/ou literário igualmente válido e bastante em voga, a qual sobretudo, nos trabalhos recentes Isabel Rio Novo, se aproxima quase sem diferenças metodológicas ou epistémicas deste “A. Montez Um percurso secular”, para além de recursos estilísticos ou opções narrativas.

O decano e mestre da biografia brasileira Ruy Castro escreveu - com arrogância dos adolescentes - “que nem todos os avós dão biografias” e, em suma, “não se devem biografar parentes”. Luís Melo neste trabalho e, em particular no seu livro mais recente o qual deixamos para outra crónica, demonstra exatamente o contrário, pelo exemplo ético e pela probidade científica, bem alicerçada em formas modernas e eficazes de referenciação bibliográfica. R. Castro traduziu preconceitos da sua formação, talvez não apenas a quem se deve biografar – embora tenha ficado famoso com livros sobre um escritor, uma cantora e um futebolista -, mas sobretudo o do mito da imparcialidade do jornalista. A mesma se pede ao historiador e ao biógrafo é certo, porém se a paixão estiver ausente de qualquer destes três labores, não pecamos como defende Nial Fergunson, traímos a memória de quem devemos resgatar e trazer aos vindouros.

Entre tudo isto, analisando a bibliografia de referência, o trabalho de Luís Duarte Melo traz ainda a lume um documento inédito sobre o regicídio, passível de tal como vasta coleção de armas e não só de ser visitado em Alcanede no Núcleo Histórico da Família Montez (NHFM), quer um, quer outro exigem mais espaço e reflexão. A crónica caminha para o fim. A biografia de A. Montez demanda leitores. O NHFM convida à visita, ou melhor a várias viagens, é impossível ver tudo numa só vez. É melhor pôrmo-nos ao caminho.

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