Opinião | 27-06-2024 07:00

A morte do poeta Fernando Grade e ainda a morte dos poetas António Osório e Pedro Tamen

Elegia para o poeta Fernando Grade que morreu recentemente e foi cruelmente ignorado por toda a imprensa.

Na minha casa de família, ao longo de quase meio século, entraram apenas como convidados especiais um poeta, depois um padre, mais tarde um político sujo e mentiroso que comeu batatas com bacalhau, e ainda hoje deve cheirar a pexum de tanto comer com as mãos. Do padre guardo a recordação de lhe cair um quadro em cima das costas quando jantava na sala de visitas. Do político guardo só o cheiro a peixe, e do poeta guardo os momentos de poesia que criamos à volta do que tínhamos presenciado sobre a paisagem do casario da Chamusca, dos campos agrícolas vistos do Mirante de Nossa Senhora do Pranto; chama-se Fernando Grade e era um índio, no verdadeiro sentido da palavra, que andava pelo país a viver da venda dos seus livros e dos livros de poetas amigos e conhecidos que mobilizava para livros colectivos que financiávamos. Eu era um deles.
Fernando Grade era um poeta maldito, que na altura imitava um estilo de vida americano, talvez inspirado nos poetas e escritores como Irwin Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs. Falo disto agora mas fico-me pela rama das palavras. O nosso encontro foi no dia 15 de Maio de 1981, e só tenho a data bem presente por causa do livro que autografou. Mas o que mais me marcou nessa noite em minha casa foi ele recusar pão torrado, com o argumento de que provocava cancro, o facto de ter a boca sem quase metade dos dentes, uns cabelos pelas costas e uma barba que parecia a de um avozinho. Vestia de preto, mas não chegámos a falar disso. Sei que veio a meu convite para uma feira do livro, mas já não me lembro como decorreu a sessão. Sempre mantivemos o contacto ao longo dos últimos quarenta anos, mas falamos muito pouco, embora tenha a grande maioria dos seus livros autografados. O último episódio com ele é triste. Convidei-o para uma entrevista quando festejou os 50 anos de vida literária e aceitou entusiasmado. Quando pus como condição começar a entrevista na sua mesa de trabalho, em São João do Estoril, e acabarmos no café A Brasileira, em Lisboa, recusou, queria que o encontro começasse e acabasse no roteiro lisboeta, e assim a entrevista foi por água abaixo. Nos últimos anos escreveu-me algumas vezes e tratou-me por senhor Antunes no seu jeito de provocar. Génio de provocador era o que tinha de sobra. A sua poesia ainda vai servir de alimento a muitos poetas, incluindo os que ainda não nasceram. Fernando Grade era um poeta genial, grande leitor, culto, mas também soberbo, excêntrico, talvez demasiado egocêntrico, como aliás é próprio dos escritores malditos. Felizmente, para ele, morreu quase anónimo como acontece com todos os poetas que escrevem à margem do sistema e das capelinhas. Mesmo assim escreveu poemas para canções. Paco Bandeira ficou em segundo lugar num festival da canção com o “Vamos Cantar de Pé”, um poema de Fernando Grade orquestrado por Pedro Osório. Nada disso mudou o rumo da sua vida de poeta. Aliás, como ainda estávamos em tempo de ditadura, fica por contar a tentativa de mudarem um verso da canção, que era provocação a mais para o regime da altura, que Fernando Grade recusou. Chegou a vereador da cultura da Câmara de Cascais, mas a vida política depois do 25 de Abril foi sol de pouca dura.
É um dos melhores poetas da sua geração. A sua morte passou despercebida a todos os órgãos de comunicação social. A notícia online de O MIRANTE sobre o seu falecimento continua a ser a referência para quem pesquisa o seu nome. Vivemos num tempo estranho em que a comunicação social enche os nossos olhos e ouvidos de opiniões de todo o bicho careta, mas os jornalistas e os jornais não têm tempo nem espaço para cumprirem a função de serviço público.
Vivemos um tempo vil e cruel com aqueles que recusam o tiro ao boneco, o pagamento da dízima, o toma lá dá cá. A injustiça de ignorarem a morte de Fernando Grade, para salientar a sua Obra, não é caso único nos últimos tempos. António Osório e Pedro Tamen morreram também recentemente e tiveram direito, num caso e no outro, a referências que quase passaram despercebidas. E eram poetas consagrados, o que não era o caso de Fernando Grade, que cultivou até ao osso uma certa marginalidade que lhe assentava muito bem. JAE.

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