Escrever como uma forma de falar sem ser interrompido e dizer merda a caminho do céu para não entrar em órbita
Folgazão Serafim das Neves
Folgazão Serafim das Neves
Só quem não tem amigos que não param de falar, conseguindo ocupar cem por cento do tempo de qualquer conversa, é que não percebe o meu gosto pela escrita. Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido.
A frase é normalmente atribuída ao escritor francês Jules Renard, mas bem podia ser minha e de tantos outros como eu, que raramente conseguem terminar uma frase num almoço de amigos, mesmo que estejam apenas a mandar abrir mais uma garrafa de vinho.
Por outro lado, eu também me farto de interromper os outros e de lhes atropelar as frases, o que faz com que escrever tenha uma dupla vantagem. Através da escrita falo sem ser interrompido e enquanto escrevo, não atropelo a conversa de ninguém. É verdade que há escritores que aceitam participar em encontros com leitores, mas isso só acontece porque sabem que não vão ser interrompidos por ninguém.
Se há cada vez mais pessoas a editar livros, mesmo não tendo jeito nenhum para a escrita, e se há cada vez mais livros a ensinar como se escreve, isso é facilmente explicável. Todos queremos falar sem ser interrompidos. E os manuais de escrita servem para incentivar os chatos a escreverem, em vez de interromperem conversas.
E mesmo nas empresas, já há chefes que, em vez de ouvirem os subordinados, lhes dizem para lhes mandarem um e-mail. E já estive num restaurante onde os pedidos eram enviados por uma rede social, embora os empregados estivessem a dois passos da mesa.
Li um dia destes que, no Reino Unido, um grupo de caça à raposa, chamado Hunting Kind, construiu um caso legal para ser considerado uma minoria étnica e ter a mesma protecção de outras minorias, ao abrigo da Lei da Igualdade.
Pensei logo nas minorias étnicas desprotegidas que têm vindo a crescer na região, nomeadamente os marialvas e o pessoal das obras especializado em piropos. As câmaras municipais não arranjam uns subsídios para salvá-los da extinção?
Aqui há dias, bati com os dedos de um pé numa porta e saiu-me um sonoro fosca-se, mas dos verdadeiros fosca-se, com todas as letras originais e não estas. A minha mulher repreendeu-me e o pessoal que estava por perto, olhou-me com ar reprovador e tapou os ouvidos às crianças.
Cá está mais uma minoria em risco de extinção. Lembro-me que, aqui na região, havia quem dissesse mais asneiras que um gajo do Porto, digamos assim. O ex-presidente da Câmara da Chamusca, Sérgio Carrinho, era um campeão. E como eu gostava de o ouvir dizer fosca-se e alho como se estivesse a citar os evangelhos.
Em certas alturas, dizer palavrões alivia a dor e faz bem à saúde. Liberta-nos, excita-nos e livra-nos de depressões. Acorda em nós, os que os dizemos sem remorsos, toda uma série de emoções muito fortes. É como levar injecções de adrenalina mental.
Imagino que uma alma pura, sem pecado, suba ao céu mais rapidamente que a de um pecador como eu, mas lembro-me da anedota daquela senhora cuja alma ia com tanta velocidade, que o S. Pedro teve que ir atrás dela, a gritar: dona Umbelina, dona Umbelina, diga merda, senão entra em órbita.
Saudações depravadas
Manuel Serra d’Aire