Guerra próximo da central nuclear russa de Kursk: pior do que em Zaporijia mas não um novo Chernobyl
A situação de guerra na Ucrânia, depois da invasão russa, faz temer novos desastres nucleares como o de Chernobyl. António Mota Redol explica que há muitos desses perigos, mas desmistifica alguma informação que está a circular e não é correcta.
No dia 22 de Agosto, foi noticiado que se verificaram acções de guerra junto da central russa de Kursk. Concretamente fora encontrados fragmentos de um drone a 100 m da instalação onde se guarda o muito radioactivo combustível usado e retirado dos núcleos dos reactores.
No dia 26, o director geral da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) – Rafael Grossi - informou que visitaria a central para ver in-loco, o que se passava.
Em textos anteriores meus sobre a central nuclear da Zaporijia, na Ucrânia, expressei a opinião de que o Director-Geral, embaixador de carreira, tomara posições favoráveis ao Governo da Ucrânia, apesar de o relatório então apresentado por ele não apresentar a situação como uma potencial nova Chernobyl, como fizeram os mal informados (ou mal intencionados!) comentadores das nossas televisões. No entanto, não informou que fora abordado por uma delegação de residentes da zona que entregou um abaixo-assinado com 20 mil assinaturas pedindo-lhe que interviesse junto do Governo ucraniano para que não continuasse a bombardear a central e a zona, ocupada então, e ainda, por tropas russas. Tudo indica que a Ucrânia, tal como a Rússia em relação às centrais ucranianas, bombardearam as linhas eléctricas para impedir a central de fornecer energia eléctrica à zona ocupada pela Rússia, tal como a Rússia o fazia relativamente às centrais ucranianas.
Recorde-se que, apesar da atitude globalmente favorável à Ucrânia do Director- Geral, o Governo ucraniano classificou o relatório como pró-russo, pois não dramatizava a situação com pretendia.
De qualquer modo, constata-se que é corajosa a atitude do Director-Geral ao visitar locais onde há guerra, seja Kursk, Zaporijia ou outra central nuclear ucraniana.
Informei, então, relativamente a Zaporijia, que os drones, mísseis e outro equipamento militar não afectariam a zona mais sensível do reactor, que se encontra protegido por um contentor de betão de grande espessura e por uma cuba de aço. E, até aqui, apesar da guerra prosseguir, nada sucedeu de grave.
A situação em Kurk é diferente. Tem 4 reactores tipo RMBK, do mesmo tipo de Chernobyl. Mas não é aí que reside o problema. O problema está em que estes grupos não possuem os tais contentores de betão. Iniciada a sua construção nos anos 70, os cientistas e engenheiros soviéticos achavam que não necessitavam de contentores de betão, como também vinha sucedendo com reactores mais antigos. Pensavam que era um exagero no Ocidente, em resultado das reacções das populações e da acção dos ambientalistas. A ausência de liberdade não permitia a informação e o debate por parte dos meios de comunicação, nem informação sobre os fracassos, acidentes e incidentes, fugas de radioactividade da energia nuclear e as oposições das populações e dos ambientalistas no mesmo Ocidente. Quando a União Soviética contruiu reactores na Finlândia, esta obrigou o construtor a instalar contentores de betão.
Logo, a situação em Kursk é mais delicada do que em Zaporijia ou noutra central ucraniana.
Quando se deu o gravíssimo acidente de Chernobyl, os nuclearistas tentaram culpar pelo sucedido o tipo de reactor. Mas o que naquela central se passou podia ter-se passado noutra do tipo das que existiam noutros países. Os engenheiros da central decidiram fazer um teste à capacidade de controlo do sistema, provocando uma situação de deficiente ou mesmo falta de circulação da água que arrefece o núcleo do reactor e transporta o calor produzido para o equipamento (o gerador de vapor), onde se produz o vapor de água que faz girar a turbina e com ela o alternador onde se produz a energia eléctrica. A experiência nunca tinha sido feita e correu mal, tendo os operadores da central perdido o seu controlo, com as consequências que se conhecem. A energia nuclear já mostrou que quando as coisas correm bem, há controlo, pelo menos relativo, evitando-se as situações graves, embora não as menos graves e que passam mais despercebidas, mas que têm repercussões a prazo. Quando correm mal, pode perder-se o controlo.
Em Kursk, com bombardeamento com drones não é o caso. Supõe-se que a cuba de aço poderá suportar o impacto de tal arma. Todavia, como alertou o Director- Geral da AEIA, a situação é mais delicada do que em Zaporijia, ou em qualquer outra central nuclear ucraniana, pois todas elas possuem contentores de betão. Um drone não deverá furar a cuba, mas um míssil de longo alcance, que se perdeu ou não, talvez possa.
Por outro lado, drones e mísseis podem atingir as instalações onde se guarda o combustível usado, pois ao fim de quase oitenta anos de energia nuclear, ainda não existe uma solução satisfatória para guardar os resíduos de muito alta actividade (recordar que têm um tempo de vida de dezenas de milhar de anos e recordar a polémica de construção de um chamado ATI – Armazenamento Temporário Individualizado - em Almaraz).
Se essas instalações forem atingidas, como agora podia ter acontecido em Kursk, o material radioactivo espalha-se por uma área vasta, de alguns quilómetros, mas nada como em Chernobyl, quando atingiram locais a muitos milhares de quilómetros de distância. Não teria a gravidade de Chernobyl, mas seria sempre grave para as populações das cercanias. E isso pode acontecer em qualquer das centrais na zona.
Por outro lado existe outro perigo com os bombardeamentos, referente à possibilidade de deixar de circular a água de arrefecimento dos reactores como em Chernobyl ou em Three Mile Island, nos EUA. Se a Rússia e a Ucrânia bombardeiam as linhas de transporte de energia eléctrica junto das centrais para cortar a energia às actividades económicas e às populações, e deve ser essa a sua intenção, e não, atingir as centrais, pode dar-se outra situação. Qual? Se as centrais deixarem de alimentar-se a si próprias em energia eléctrica, essas linhas que delas partem (mas também podem trazer energia produzida noutras) deixam de alimentar a central e as bombas que fazem circular a água de arrefecimento dos reactores podem deixar de fazê-lo. Neste caso, estariam a falhar dois modos de alimentar as tais bombas. Mas ainda há uma terceira via, que são as bombas alimentadas a gasóleo. Como se vê, seria muito improvável que as três fontes de fazer circular a água de arrefecimento falhassem. Mas o Director-Geral da AEIA coloca a questão de poder acontecer.
Alguns meios de informação portugueses estão a dizer que Kursk é a Chernobyl 2. Deturpam uma afirmação do Director- Geral da AEIA de que os reactores de Kursk são como os de Chernobyl, o que confirmamos atrás. Mas isso não quer dizer, como explicámos com o que se passou nesta central em 1986, que se venha a repetir, nas actuais circunstâncias, um desastre idêntico.