Para lá do Marão mandam os que lá estão
Uma viagem de verão pelo norte de Portugal, que parece outro país para quem não tem o hábito de viajar de Coimbra para cima; e uma visita à Feira do Livro do Porto para ouvir a Pilar.
Estou num sítio à beira da estrada, numa aldeia perto de Alfândega da Fé, num turismo rural com café e restaurante, e os meus companheiros de sala são todos transmontanos. Sinto-me em casa e percebo que tudo o que gira à minha volta é obra de uma jovem família que trabalha de dia e de noite. Lembro-me do café restaurante do Perneta, perto do Chouto, onde o pessoal da minha terra, nos idos anos setenta, ia encher a barriga em grupo e, algumas vezes, em família.
O arroz-doce não tinha a casca do limão, mas era como se tivesse; o cheiro a perfume na sala fez-me lembrar o cheiro das mulheres nos casamentos e nos dias de festa quando acompanhavam as filhas aos bailes da colectividade. O facto de ser sexta-feira deve explicar a sala cheia, o que obrigou alguns clientes a entrarem numa outra sala do restaurante que ficava longe da vista.
Numa mesa perto da minha, seis homens sessentões comemoravam uma data festiva. Identifiquei-os um a um com outros homens de trabalho que conheço da minha terra e das terras vizinhas. O que falava mais tinha um bigode em forma de ferradura. Parecia um actor francês dos filmes dos anos sessenta; o cabelo meio esbranquiçado, farto, tinha o molde do boné, o pescoço com uma bossa acentuada; era o único que não bebia vinho tendo optando pela cerveja. Só falaram de trabalho. Dois deles quase que não balbuciaram palavra de tão concentrados que estavam nas postas do bacalhau. Na minha terra e nas terras vizinhas há muitos anos que se perdeu este espírito de grupo, de vizinhança, de compadrio, no bom sentido da palavra. Como não posso ficar a espreitar e a calhandrar todas as mesas vizinhas, concentro-me naquela onde tenho mais para aprender. O telemóvel onde tomei notas serviu também para disfarçar o interesse que tinha naquela conversa de transmontanos à volta de uma mesa.
Uma menina de nove anos assegura o balcão do café por onde se entra para o restaurante. O pouco tempo que permaneci no espaço, lendo os programas das festas e os cartões de visita dos clientes/empresários espetados na parede, foi suficiente para ouvir o óbvio: “isto é exploração de mão-de-obra infantil”. A menina fingiu que não ouviu, tinha um rosto sério, percebi que conversa daquela, mesmo a gozar, é música para os seus ouvidos. Durante a hora e meia que demorei a roer uma costeleta de novilho, e deixei o tempo correr para não me deitar com as galinhas, passou uma dúzia de vezes no apoio à cozinha e ao serviço de mesas. O telemóvel no bolso de trás das calças e a forma como olhava para os clientes era de quem se sentia em casa e esperava estar a fazer o seu melhor dia de trabalho. Quem diz que “o trabalho da criança é pouco, mas quem o desperdiça é louco” só quis fazer piada. Uma criança de nove anos a ajudar a família consegue fazer melhor que um adulto. E não é só por conhecer os cantos à casa; é por saber onde é que é útil e não atrapalhar quem tem que estar em todo o lado ao mesmo tempo.
Um salazarista com quem convivi ainda alguns anos, e que me falava de alto quando eu era mais jovem, dizia-me com a voz grave que Portugal não é um país agrícola, mas sim um país pedrícola. É preciso ir para lá do Marão para perceber o que ele queria dizer. Mas os homens do norte não são de brincadeiras. Os filhos dos que plantaram as vinhas do Douro andam agora a plantar oliveiras e amendoeiras nas encostas das serras.
Para quem percorre aquelas estradas pelo interior “a vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: - Entre! A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”, conta Miguel Torga que nasceu em São Martinho da Anta, perto de Vila Real.
Se alguém do meu grupo ler esta crónica, o que é improvável, vai dizer que escrevo de barriga cheia porque não aproveitei o convívio no rio Sabor até ao final. A verdade é que a Pilar del Rio falava nesse dia no encerramento da Feira do Livro do Porto e era impossível estar nos dois lados ao mesmo tempo. Por isso no último dia dormi a manhã na cama e depois regressei ao Porto a parar pelo caminho comendo amoras silvestres e espreitando a paisagem e tentando encontrar memórias de leituras de Miguel Torga mas também de João de Araújo Correia e Aquilino Ribeiro, três escritores que dormiram e ainda dormem à cabeceira da minha cama.
A Pilar, como sempre, foi igual a si própria. Leu um texto original de José Saramago, falou em espanhol porque defende que cada um deve falar a sua língua esteja onde estiver, e, para ser coerente, antes de falar da Obra e do valor do nosso prémio Nobel gozou com a classe política que na Assembleia da República censurou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, e ainda disseram que estava mal escrito. JAE .