Opinião | 20-10-2024 17:35

Nenhum homem é uma ilha

Nenhum homem é uma ilha

Quando o refúgio familiar se confunde com o trabalho e uma rede social com a vida, acabrunhamo-nos na nossa concha e negamos a nossa humanidade. Ao contrário dos bivalves que quando se abrem morrem, nós fenecemos quando nos fechamos.

"No man is an Island", ou em português “Nenhum homem é uma ilha”, é uma expressão retirada de um sermão do século XVII proferido pelo Deão da Catedral de S. Paulo em Londres, John Donne. As suas meditações, reflexões, invocações a Deus e orações estão reunidas numa colecção denominada “Devotions upon Emergent Occasions”. “Nenhum homem é uma ilha” é um excerto da 17.ª Meditação, a qual reza assim:

No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend’s, or of thine own were; any man’s death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee”.

Tradução livre: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é um pedaço e uma parte do todo; se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse uma mansão dos teus amigos ou a tua própria casa; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte da humanidade, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Percebe-se que Donne ilustra a interdependência irreversível da humanidade, a fragilidade da condição humana, o impacto da perda e a morte. Enfatiza mesmo a inevitabilidade da morte para todos, para ti.

Somos seres interrelacionais. Não existimos sem o outro. Realizamo-nos quando vivemos em comunidade, quando dialogamos, quando convivemos. A expressão oral e corporal concretiza-nos. O contrário nega a nossa humanidade, semeia o individualismo, suscita o egoísmo, convida ao desânimo, que é morte antecipada.

Infelizmente, fechamo-nos cada vez mais nas nossa bolhas e ficamos cada vez mais intolerantes à diferença. Conversa-se através de redes sociais, mesmo que se esteja ao lado do outro. Nos transportes públicos ninguém olha para ninguém, com faces absorvidas em pequenos écrans de telemóveis. Os gurus da parvoíce, elogiam o teletrabalho como o paradigma das novas relações laborais e do equilíbrio familiar.

Errado. Nada de mais errado.

No ocidente, estamo-nos a transformar em milhões e milhões de ilhas minúsculas, quanto muito, em arquipélagos de verdades absolutas.

Ao invés, homens e mulheres necessitam do convívio para se tornarem pessoas, carecem do olhar de/ e para os outros, de ralhar e gritar, de chorar e rir em conjunto e de comer e beber à mesma mesa. Reclamam modorrentos fins de tardes à volta de uma garrafa de vinho, esquadrinhando o mundo e a sua rua, vislumbrando o que mais ninguém vê e sonhando com a felicidade que, muitas vezes, já habitam sem o saberem.

O paradigma fundamentalista do teletrabalho e as horas brutais desperdiçadas nas redes sociais, impelem o Ser Humano para a concha da sua cobardia, engendram-lhe realidades virtuais, insuflam-lhe bolhas perversas e pútridas, protegem-no da dura e doce realidade da vida, fomentam-lhe o medo da rua e da diferença e geram-lhe o vazio, o desânimo e a mortificação da vontade.

Quando o refúgio familiar se confunde com o trabalho e uma rede social com a vida, acabrunhamo-nos na nossa concha e negamos a nossa humanidade. Ao contrário dos bivalves que quando se abrem morrem, nós fenecemos quando nos fechamos.

E depois queixamo-nos do medrar das doenças mentais, dos quadros demenciais e depressivos incapacitantes, da tristeza, ou da angústia.

“…e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

P.N.Pimenta Braz

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