Opinião | 01-11-2024 14:42

As ignorâncias, deturpações e ocultações relativas à energia nuclear

A. Mota Redol*

O jornal Público publicou um texto de um auto-designado “bioquímico e divulgador de ciência”, que vem colaborando no jornal há alguns meses, cujos conhecimentos sobre o nuclear são duvidosos; por isso apetece perguntar: porque não se dedica a escrever sobre a matéria em que se formou?

Na 6ª feira, 18 de Outubro, o jornal Público editou um texto de um auto-designado “bioquímico e divulgador de ciência”, que vem colaborando no jornal há alguns meses, dissertando sobre os mais diversos aspectos no domínio da ciência.

No artigo, informa que o ex-CEO da “google”, Eric Schmit, argumentou que não se atingirão os objectivos de luta contra as alterações climáticas sem recurso à Inteligência Artificial, a qual exige enormes quantidades de energia.

O articulista, “um reconhecido especialista em planeamento energético”(!,?), como se deduz da sua formação universitária e actividade, defende, então, que o recurso à energia nuclear é inevitável, afirmação que nada tem de científica, nem de economicamente provada.

Informa ele que a empresa Microsoft - que se tem caracterizado, como se sabe, por um “comportamento cívico exemplar” (!,?) fugindo ao pagamento de impostos – anunciou que realizou um acordo com a empresa proprietária da central de Three Mile Island, na Pensilvânia, para voltar a pôr a funcionar um dos grupos da central já desactivado. A propósito, recorda o articulista que um dos grupos desta central teve um acidente em 28 de Março de 1979, de que resultou a fusão de parte do núcleo, acontecimento que não diz o articulista ter sido muito grave, ter tido um efeito enorme em todo o mundo e uma consequência devastadora na confiança da energia nuclear, o que levou a uma queda abrupta nas encomendas deste tipo de centrais e no cancelamento de muitas encomendas. Recordo que Chernobyl e Fukushima foram o golpe de misericórdia.

A fusão do núcleo era considerada pelos especialistas em segurança nuclear o acidente mais grave, mas com uma probabilidade pequeníssima, segundo o célebre Relatório Rasmussen (também conhecido por WASH-1400), publicado em 1974 pela estadounidense Nuclear Regulatory Comission (NRC), que “calculava” as probabilidades de vários tipos de acidentes e comparava com aquele. Na altura, este relatório foi muito explorado pelos nuclearistas, mesmo os portugueses, mas a ilusão desfez-se com Three Mile Island e deixou de ser citado. Sem citarem o mesmo, os nuclearistas de hoje referem-se às mesmas conclusões.

Em primeiro lugar, o autor do texto escamoteia que, mesmo não tendo sido possível esconder o acidente num país democrático e com imprensa bastante livre como os EUA, durante anos a fusão parcial do núcleo foi escondida e só há poucos anos foi divulgada. Por outro lado, ele também não se refere a que, na altura do acidente, quando se soube que estava a haver problemas na central a população da cidade nas cercanias, Harrisburg - nome pelo qual, por vezes, a central também é conhecida – fugiu em massa, mesmo depois de as autoridades da cidade terem organizado uma evacuação dos habitantes mais vulneráveis, como as crianças. mostrando uma total desconfiança na energia nuclear, nos responsáveis da central, nas autoridades locais e na autoridade governamental fiscalizadora, a Nuclear Regulatory Comission (NRC).

Houve passagem para o ambiente de gases radioactivos, o que obrigou a um estudo por parte das autoridades, mas técnicos independentes contestaram, revelando que as quantidades de radiação eram muitas vezes superiores ao divulgado. Na altura disse-se, e ainda hoje, que não morreram pessoas. Todavia, todos sabemos que as mortes por cancro provocadas por radiações só surgem muitos anos depois. Em Hiroshima e Nagasaki não continuaram a morrer pessoas tantos anos depois das bombas? E na nossa mina da Urgeiriça? E noutras minas pelo mundo fora? E em Chernobyl e zonas limítrofes?

Também não é referido que, em Setembro de 1979, se realizou uma grande manifestação em Nova Iorque com cerca de 200.000 pessoas protestando contra o encobrimento da radioactividade difundida no local e contra a energia nuclear.

A central de Three Mile Island tinha dois grupos nucleares: o nº1 de 800 MW, entrado em serviço em 2 de Setembro de 1974 e o nº2, de 906 MW, em 30 de Dezembro de 1978. Quer dizer, este grupo funcionou durante menos de 3 meses. Veja-se bem o prejuízo que a empresa teve. Além disso, a descontaminação do local e da central custou 1.000 milhões de dólares.

E o seu desmantelamento, bem como o do Grupo 1, que deixou de funcionar em 2019, ao fim de 45[1] anos, ainda não se verificou. O do Grupo1 deve vir a custar tanto como o investimento no grupo, isto é um valor elevadíssimo numa operação que pode demorar 30 anos. E o do Grupo 2, o do acidente, muito mais complicado, ainda será mais dispendioso.

Porque o custo de desmantelamento é tão elevado, as empresas proprietárias tentam atrasar o mais possível o encerramento, mas com o perigo de os equipamentos com componentes em aço, o qual enfraquece por acção das radiações, vir a colapsar.

Anuncia o articulista que a central estadounidense de Palisades, no Michigan, também poderá voltar a funcionar.

Esta central com apenas um grupo de 800 MW, entrou ao serviço em 1971 e encerrou em 2022. Funcionou durante 51 anos.

Para este grupo voltar a funcionar a NRC pode vir ai emprestar 1,5 mil milhões de dólares, para um custo total de 2 mil milhões[2], isto é, a energia nuclear continua a viver à custa dos subsídios dos Estados, sem falar nos investimentos em investigação que desde sempre fora realizados em centros de investigação e não pagos pelas empresas proprietárias das centrais ou pelas empresas construtoras de equipamentos ou de elementos de combustível. Para não falar que, em caso de acidente grave, as empresas e as seguradoras só pagam uma parte das indemnizações devidas, e os Estados pagam a grande fatia.

Como podemos confiar numa entidade reguladora e fiscalizadora como é a NCR, se, ao mesmo tempo que realiza a sua função, financia a inaceitável reabertura duma central velha com ainda mais elevado risco de acidente?

Nesta central, na inspecção realizada recentemente, foram detectadas fissuras graves em 1163 tubos dos geradores de vapor. Os geradores da vapor são, com o núcleo do reactor, os equipamentos mais importantes de um grupo nuclear e constituem cerca de 20% do custo duma central. Este facto não é caso inédito e, especialmente, nos anos 80 constituiu um quebra cabeças para as empresas proprietárias das centrais e para as empresas produtoras de equipamento. Mas situações semelhantes continuaram a acontecer.

Em 2021, a NCR declarou ser esta central a de pior desempenho nos EUA, com inúmeras situações de encerramentos intempestivos.

As intenções de certas entidades podem dar azo a notícias muito sensacionalistas por vezes pagas a peso de oiro, mas resta saber se terão aplicação prática. É que a opinião pública não está convencida, apesar das manipulações, e as manifestações nos EUA sobre este assunto não esmoreceram, e, assim que há uma fuga de material radioacivo há reacções populares.

O Sierra Club – Michigan Chapter já veio levantar objecções ao reactivar de Palisades. Esta organização foi fundada em 1892 com o objectivo de defender a Natureza, tendo-se tornado uma prestigiada e influente organização de defesa do meio ambiente, que tomou inúmeras posições públicas e é ouvida pelas autoridades. Participou na fundação de vários parques nacionais e na implementação de legislação defensora do ambiente.

Esta orientação de reabrir centrais velhas com dezenas de anos, com equipamento velho e debilitado, em que o risco de acidente é muto maior do que numa central nova, não lembra ao diabo. Só em mentes que apenas pensam no lucro que ainda podem dar.

O mesmo “bio-químico e divulgador científico” publicou em 9 de Fevereiro de 2024 no Público um inenarrável texto, já atrás referido, que foi alvo de um protesto para o Director do jornal, assinado por António Cândido Franco (professor universitário e ex-membro dos Amigos da Terra), António Eloy (fundador dos Amigos da Terra no nosso país e participante em inúmeras acções de defesa do meio ambiente e contra a energia nuclear militar e civil em Portugal, Espanha e outros países), António Mota Redol (ex-quadro da Junta de Energia Nuclear e no Planeamento de Novos Centros Produtores da EDP e da REN), Carlos Pimenta (ex-Secretário de Estado do Ambiente no primeiro Governo de Cavaco Silva, ambientalista), Fernando Santos Pessoa (ex-dirigente do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza – SNPRCN -, actual Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas – ICNF), José Carlos Costa Marques (editor, pioneiro da Ecologia em Portugal), Manuel Collares Pereira (Estagiário em Energia Nuclear na Alemanha, fundador do Centro para a Conservação da Energia e do Instituto Português de Energia Solar, membro da Academia das Ciências). São tudo pessoas com uma longa experiência no domínio da energia e do ambiente, muito mais classificados que aqueles que agora se pronunciam a favor da energia nuclear. Mas nunca ou muito raramente são ouvidos pela comunicação social.

Estes últimos, são jovens que agora entraram no assunto, não acompanharam o longo e negativo historial da energia nuclear militar e civil e desconhecem-no, alguns integrando centros de investigação universitários, numa Universidade cada vez menos independente e dominada por interesses privados que financiam esses centros. O Instituto Superior Técnico, por exemplo, gaba-se de 60% do seu orçamento ser oriundo de empresas.

E se o auto-designado “bioquímico e divulgador de ciência” escrevesse sobre a matéria em que se formou?



[1] Recorde-se que nos anos 70 e 80, no planeamento de novos centros produtores de energia eléctrica, considerava-se que os grupos nucleares teriam uma vida de 25-30 anos. Veja-se o risco que tão longas vidas estão a fazer correr as populações.

[2] Sabe-se como os orçamentos, no caso da energia nuclear, acabam por ser multiplicados por 2 por 3.

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