Foi preciso chegarmos a 2024 para aparecer um governo que quer acabar com a publicidade na RTP
A RTP recebe anualmente 200 milhões de euros do Estado e factura publicidade em concorrência com todas as empresas de comunicação social do país. Não é justo. No mínimo é uma afronta.
Num dos livros mais belos da literatura do nosso tempo, Sándor Márai conta uma história ao longo de quatro décadas dando voz a quatro narradores. De verdade é um livro fabuloso, daqueles que fazem jus a um texto de Baudelaire, que cito de cor, que diz que a leitura e releitura ao longo da vida de dez grandes livros chegam para fazer um homem culto.
Já perto do final do livro, uma das personagens mais belas e sinistras do romance, conta que “a pobreza para as crianças é diferente do que imaginam os adultos que nunca foram pobres de verdade. Para a criança a pobreza é sempre divertida, e não apenas miséria. Para a criança pobre, a sujeira em que ela se arrasta e se deita é boa. E na pobreza não é preciso lavar as mãos. Para quê? A pobreza é ruim, muito ruim, somente para os adultos... é o pior que tudo, é como a sarna e a cólica do intestino”.
A personagem usurpou o poder de um homem, tomou conta da sua casa rica e da fortuna de uma família, onde toda a vida foi empregada doméstica. Judit, é assim que se chama a personagem, conta num quarto de hotel de Roma a um novo namorado como foi viver a experiência de passar de empregada do patrão a sua esposa. E relembra como em criança era feliz ao chapinhar na lama da vala que passava perto de sua casa, ao mesmo tempo que conta como viviam os ricos, as suas vidas, as suas manias, os seus poderes, as suas incompletudes que, quase sempre, nos romances, mas também na vida real, roçam o ridículo.
Confesso que conheci este livro muitos anos depois de conhecer o professor doutor Alberto Arons de Carvalho, recentemente eleito presidente do Conselho Geral Independente da RTP um órgão de supervisão e fiscalização interna do cumprimento das obrigações de serviço público de rádio e televisão, previstas no contrato de concessão assinado entre a RTP e o Estado.
Arons de Carvalho é o homem forte do PS para a comunicação social, e para ele a idade não conta, o importante é estar vivo e poder continuar a ter uma palavra na gestão do serviço público, seja ele qual for, desde que seja sentado numa cadeira dourada.
Com 75 anos e uma carreira política sempre à tona de água, Arons de Carvalho é um dos coveiros da Imprensa local e regional, não tanto pelo que fez, mas pelo que não fez. E estou a ser curto e grosso para não me alongar. Claro que não é ele o único culpado do fecho de mais de meio milhar de jornais na última década, mas é sim senhor um dos políticos mais responsável do estado a que chegamos, tanto enquanto secretário de Estado com a tutela da comunicação social como em outras funções onde teve poder sobre as políticas para os media.
Há muitos anos que tenho esta convicção, já pública e publicada, devidamente fundamentada em testemunhos e testemunhas que, na sua grande maioria, já morreram ou ficaram a espernear na árvore em que se enforcaram.
Enquanto vou relendo alguns livros da minha vida, como é o caso “De verdade”, vou também observando como os políticos conseguem manter os seus poderes num país que já tem mais anos de democracia do que teve de ditadura salazarista. Para mim a metáfora sobre a pobreza da Judit aplica-se que nem uma luva aos políticos que se agarram ao poder como as lapas às rochas. Há por aí uma geração de políticos que não largam os ossos, cujas vidas só ficam completas quando saírem em ombros dos organismos públicos para logo de seguida, roçando o ridículo, caírem de cu na lama de uma vala onde brincam as crianças pobres.
Nota. Foi preciso esperar pelo ano de 2024 para aparecer um governo que finalmente vai proibir a RTP de facturar publicidade em concorrência com as empresas privadas que prestam o mesmo serviço mas não recebem 200 milhões de euros por ano de financiamento dos dinheiros públicos. Nada contra a RTP, mas sejamos justos; só quem é parvo é que não percebe que há muitos anos que estamos a regredir para o país que já foi de filhos e enteados. JAE.