A acção da Censura e da Polícia Política na actividade editorial em Portugal.
O caso de Coimbra relativamente a algumas edições. A defesa de uma arte social. As edições de autor para fugir à censura. A maioria dos censores do regime eram oficiais do Exército. A importância das Publicações Europa-América de Francisco Lyon de Castro. Os editores, os escritores e a acção da censura em Portugal desde 1937 até 1974.
O volume Cadernos da Juventude, editado por Arménio Amado, Editor, foi apreendido na tipografia pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE - mais tarde PIDE e DGS), em 1937, e queimado no Governo Civil de Coimbra. Continha textos de Manuel Filipe, Frederico Alves, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Políbio Gomes dos Santos, uma entrevista com Abel Salazar e desenhos de Fernando Namora e António José Soares. Segundo Luís Andrade (ou Luís Crespo de Andrade) «é no prefácio de Cadernos da Juventude […] que as coordenadas do Neo-Realismo se apresentam pela primeira vez em bloco: a defesa de uma arte social, enraizada nas realidades nacionais, realista, anti-subjectivista e anti-naturalista, cujo fundamento ideológico seria um racionalismo moderno».
Aquele não era o procedimento habitual daquela Polícia. Os livros eram enviados pelas editoras para as tipografias para serem compostos e impressos, e, uma vez concluídos, eram enviados por estas últimas para as primeiras e, obrigatoriamente, uns tantos exemplares para a Biblioteca Nacional para distribuição por diversas bibliotecas públicas. Normalmente, os livros eram de seguida distribuídos pelas livrarias, de onde alguns chegavam à Censura pela mão da Polícia Política (seria um ou poucos exemplares de cada título), que seleccionava certos livros, supõe-se que devido a visitas de agentes seus a livrarias, por informações colhidas nas páginas literárias dos jornais e revistas, por denúncia de pessoas ligadas ao Regime, por informadores da Polícia.
Eram analisados por censores e, quando era proposto por estes, a edição era apreendida na totalidade ou na parte encontrada. A Direcção dos Serviços de Censura chegou a propor em 1933 que as livrarias fizessem listas de livros que tivessem conteúdo político ou social, que elas não aceitaram. O Decreto-Lei nº 22469, desse ano, dirigia-se precisamente a esse tipo de publicações.
No caso dos Cadernos da Juventude não foi assim. Porquê? É provável que a PVDE tenha sabido antecipadamente da preparação da edição e tenha actuado. Provavelmente, porque o grupo de pessoas que prepararam o volume estava sob vigilância. Joaquim Namorado já tinha sido preso em 1933. Mas como soube a PVDE? Ou por inconfidência de um dos do grupo, ou porque falaram do assunto nos seus encontros de café e um informador da Polícia ouviu, ou porque havia algum informador no editor ou na tipografia. Depois do 25 de Abril, pelos arquivos da já então Direcção-Geral de Segurança (DGS), veio a saber-se da existência em Coimbra de um informador de pseudónimo Inácio, que nunca se descobriu quem era, e que, pelos seus relatórios se conclui que conhecia bem o grupo neo-realista e o seu trabalho. Pode ter sido ele.
Era habitual a Censura analisar um livro (os censores eram quase todos oficiais do Exército) e solicitar à PVDE/PIDE/DGS a apreensão do livro, no editor e nas livrarias. Às vezes, iam às editoras e viam quais as livrarias que tinha recebido exemplares através das guias de remessa, e actuavam pela certa. Por isso, muitas vezes, as livrarias recebiam a informação prévia da saída dos livros e asseguravam a sua venda a clientes habituais e de confiança. Outras vezes, as editoras colocavam os livros em locais que a Polícia desconhecia e as livrarias faziam o mesmo.
De qualquer modo, se a totalidade da edição era apreendida, ou boa parte dela, era um grande prejuízo para a editora, que não podia recuperar o investimento feito. Por isso, muitas editoras recusavam a publicação de livros em situação de risco.
Tendo conhecimento do que sucedera com o Cadernos da Juventude, Augusto dos Santos Abranches, bem como as outras editoras de Coimbra que mais tarde publicaram obras de autores neo-realistas, Coimbra Editora (no período 1943-1957) e Atlântida Editora (no período 1945-1969), terão tido receio de novas apreensões (eram vários os volumes programados) e terão declinado publicar os volumes da colecção Novo Cancioneiro. Repare-se que aquelas duas editoras só começaram a publicar livros de autores neo-realistas (romances), alguns dos quais os mesmos de Novo Cancioneiro, quando as tropas do Exército Vermelho Soviético já levavam de vencida as tropas nazis, ou, no caso da segunda editora, já mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando parecia que as potências democráticas iriam fazer soçobrar o designado por Estado Novo, o que não se verificou. Pelo contrário, em 1949, Portugal foi um dos países fundadores da NATO.
Augusto dos Santos Abranches e a sua Livraria Portugália tinham publicado, em 1937, Sedução, de José Marmelo e Silva, e As Sete Partidas do Mundo, de Fernando Namora, romances que não eram neo-realistas, nem conteriam trechos que a Censura vetasse. Não eram, portanto, livros passíveis de apreensão. Já os volumes da colecção Novo Cancioneiro não estariam na mesma situação, não só pelo seu conteúdo que não agradava ao Regime, como porque, em parte, os seus autores eram conhecidos da PVDE e alguns estavam incluídos em Cadernos da Juventude.
Assim, os jovens neo-realistas coimbrões decidiram optar pela edição de autor, tendo o primeiro volume – Terra, de Fernando Namora - inserido na última página a seguinte indicação: «Todos os pedidos deste livro devem ser feitos ao seu autor: Rua do Loureiro, 9 – Coimbra», morada de João José Cochofel, um edifício quase palacete, com uma grande biblioteca e onde o chamado Grupo Neo-Realista de Coimbra se reunia.
O volume seguinte – Poemas, de Mário Dionísio - já dizia: «Todos os pedidos deste livro devem ser feitos ao Novo Cancioneiro: Rua do Loureiro, 9 – Coimbra», assim prosseguindo até ao nº 5 – Poemas de Álvaro Feijó, de Álvaro Feijó - (nº 3 Sol de Agosto, de João José Cochofel, nº 4 Aviso à Navegação, de Joaquim Namorado). No nº 6 – Planície, de Manuel da Fonseca – escrevia-se o mesmo e «Distribuição da Portugália – Rua Joaquim António de Aguiar – Coimbra». Já no nº7 – Turismo, de Carlos de Oliveira – escrevia-se: «Todos os pedidos deste livro devem ser feitos à casa distribuidora: Portugália - Rua Joaquim António de Aguiar – Coimbra», texto este que se manteria até ao nº 9 - Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro - (nº8 - Passagem de Nível, de Sidónio Muralha-), mas no último volume da Colecção, depois de uma interrupção de cerca de dois anos, o nº 10 – Voz Que Escuta, de Políbio Gomes dos Santos -, de 1944, não figura aquela informação. Augusto dos Santos Abranches emigrou para Moçambique no início daquele ano, vendendo a livraria e editora. E o que se teria passado para haver aquela interrupção?
Todavia, desde o início da Colecção, a Livraria Portugália terá vendido os volumes publicados.
Todos os volumes foram compostos e impressos na Tipografia da Atlântida de Coimbra, pois a editora do mesmo nome, já referida, possuía a sua própria tipografia.
Os volumes desta Colecção foram, então, edições dos autores, o que era vulgar em Portugal na época, com escritores jovens e outros menos jovens e consagrados, como por exemplo Miguel Torga e Alves Redol, este em vários dos seus livros a começar por Glória Uma Aldeia do Ribatejo, de 1938, um ensaio etnográfico e Gaibéus, de 1939.
No entanto, se Fernando Namora, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, João José Cochofel teriam condições financeiras para pagar as edições, já noutros casos há a certeza que não teriam e noutros fica a dúvida. João José Cochofel era de uma família endinheirada e com propriedades. É provável que, como em muitos outros casos do Grupo Neo-realista de Coimbra, tenha financiado a edição do primeiro e de alguns dos outros volumes, servindo as receitas da venda do primeiro e de outros para pagar os seguintes e, assim sucessivamente, já que os volumes ter-se-ão esgotado rapidamente.
Daí, provavelmente, a indicação inicial de os pedidos serem realizados para a casa de Cochofel. Talvez, também, porque sendo uma família abastada e prestigiada em Coimbra, a PVDE não se atreveria a invadir a casa para apreender os volumes publicados.
Em 2010, a althum.com, uma editora de livros de grande qualidade de conteúdo e gráfica, publicou uma edição fac-símile dos 10 volumes e um volume acompanhado com um CD contendo alguns dos poemas ditos por Maria de Jesus Barroso e textos de vários escritores. Ela era uma extraordinária declamadora de poesia, actriz com o Curso de Arte Dramática do Conservatório Nacional de Lisboa, demitida pelo Regime Fascista do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, proibida de fazer Teatro e de leccionar em escolas públicas ou privadas, e que nos anos 40 e 50, e mesmo nos anos 60 e mais tarde, realizou inúmeros recitais com poemas dos poetas do Novo Cancioneiro.
Esta edição foi apresentada no Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II, a 3 de Maio de 2010, com assistência de personalidades da cultura e da cena política.
A edição foi apoiada financeiramente pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/ Museu do Neo-Realismo e teve o patrocínio de outras entidades.
Voltando à questão das apreensões pela PVDE/PIDE/DGE por ordem da Censura, devemos recordar que, apesar das manobras das editoras e das livrarias para se furtarem àquelas, muitos exemplares foram apreendidos, causando prejuízos enormes a muitas editoras, que atravessaram períodos muito difíceis. Algumas começaram a enviar os livros dactilografados para a Censura para serem sujeitos a Censura prévia, a qual não era, por lei, obrigatória para os livros, mas apenas para as publicações periódicas.
Numa entrevista a um jornal depois do 25 de Abril, Manuel da Fonseca relatava que o seu romance Cerromaior, de 1943, foi enviado para Censura prévia pela Editorial Inquérito, uma das editoras mais castigadas, a qual por essa altura já passava por graves dificuldades financeiras, necessitando do apoio dos amigos, alguns deles escritores, os quais assinaram as designadas letras, documentos de responsabilização perante os bancos. Em alguns casos, esses amigos tiveram de pagar o valor dessas letras num montante muito elevado.
Em 1962, no Congresso Internacional de Escritores, realizado em Barcelona, Francisco Lyon de Castro fez uma intervenção em que denunciou o que se passava em Portugal com a Censura e a acção da Polícia Política no meio editorial. Quando as instalações da editora em Mem Martins foram invadidas pela PIDE e foram apreendidos milhares de exemplares de edições de forma indiscriminada, o caso foi encarado como retaliação. Um dos livros apreendidos nada tinha a ver com escritores de esquerda, que constituíam grande parte do catálogo da editora. Tratou-se do livro do preso estadounidense por crimes vários Caryl Chessman 2455 – Cela de Morte, editado nos EUA em 1954 e com edição de Publicações Europa-América em 1960, ano em que o preso foi sujeito à sentença de pena de morte. Este livro teve edições sucessivas e foi um best-seller mundial. A editora passou por grandes dificuldades, acabando a Polícia por devolver, senão todos, mas, pelo menos, grande parte dos livros apreendidos.
Publicações Europa-América era, então, a maior editora portuguesa, e uma das maiores da Europa, com oficinas gráficas que eram das maiores do país. Além das edições normais, publicava uma colecção de livros de bolso que tinha uma tiragem de várias dezenas de milhares, o que era uma pedrada no charco num país onde a taxa de analfabetismo ainda era muito elevada e a desconfiança das autoridades por tudo o que era cultura era enorme, com um Orçamento de Estado para a Cultura irrisório.
A Polícia Política apreendeu, desde o Golpe Militar do 28 de Maio, centenas de títulos, totalizando muitos milhares de exemplares.
António Mota Redol