O trabalho, dançar em Paris, Milan Kundera e à memória de José Manuel Roque
A reabertura da catedral de Notre Dame, o trabalho de jornalista, a morte que existe para alimentar a eternidade, e outras palavras roubadas ao quotidiano dos últimos dias.
Já vou em quatro horas de trabalho a montar uma entrevista quando recebo no telemóvel fotos de uma neta, com meses de vida, a chorar no momento em que prova a sua primeira comida sólida, uma sopa que, pela aparência, deve estar muito boa, mas para ela deve saber a amêndoa amarga, uma vez que até agora só conhecia o sabor do leite da mãe.
A meio da manhã recebo a notícia da morte do empresário e amigo José Manuel Roque, cujo internamento no Hospital tenho vindo a acompanhar; nos últimos dias o seu coração batia como o de um passarinho, diziam os médicos da unidade hospitalar onde estava internado. A última vez que estivemos juntos, se bem me lembro, foi no Tribunal de Santarém, onde foi minha/nossa testemunha abonatória, num caso que envolveu um personagem manhoso. Ficamos a dever-lhe esse favor que, agora, só lhe poderei pagar na eternidade.
Antes de me mandar à entrevista como um leão, velho e um pouco cansado da jornada, mas ainda com as garras afiadas, andei a navegar nos vários endereços de email onde tenho guardado dezenas de currículos para ajudar a equipa a escolher novos colaboradores.
Ainda trabalho textos de entrevistas de vida, mas recuso-me a fazer entrevistas de emprego. Chega. Não quero pensar no tempo em que comi a primeira sopa, mas também não quero chegar à idade do empresário José Manuel Roque e ainda andar à pesca, sabendo que o que vem à rede é peixe mas nem todo é de confiança.
Vou à cozinha de hora a hora beber café das velhas e mordiscar qualquer coisa. A televisão é toda catedral de Notre Dame, que, neste dia, volta a abrir ao público depois do grande incêndio que comoveu o mundo. Vou lá todos os anos, mas é muito raro entrar na Catedral; o meu destino é um lugar a 100 metros do monumento onde se dança numa cave com música ao vivo e se fala em várias línguas. O espaço é pequeno, mas é único, como uma catedral. Lá dentro só sobrevive quem dança, quem vai para transpirar e conhecer gente que, tal como eu, está de passagem pela cidade e não gosta de abanar o capacete, mas de música de jazz ou dos anos sessenta. A primeira visita à Catedral foi há muitos anos, e serviu na altura para ficar por lá cerca de cinco minutos a ouvir o silêncio, que depois fica na memória durante o resto do ano, até voltarmos aos lugares onde somos felizes. Antes e depois do incêndio voltei a dormir lá por perto num daqueles pequenos hotéis que servem às mil maravilhas só para descansar um fim-de-semana.
Pela primeira vez o texto da entrevista que estou a montar saiu do gravador directamente para o computador em letra de forma graças à ajuda da IA e do Fábio Oliveira. Amanhã vou levar a novidade a toda a equipa. Veremos quem, depois desta descoberta, vai continuar a achar que não pode confiar nas tecnologias. Mesmo assim vou chorando por não poder gozar a luz do dia de sábado, agora que já são quase seis da tarde, e só trabalhei, e comi, e falei ao telefone sobre trabalho.
À noite fui a Corroios jantar a uma colectividade a convite de um amigo, mas com um pavilhão dominado por japoneses que ofereceram a comida. A vida nas colectividades é igual em todo o lado, só muda nas terras que perdem habitantes, têm as casas a cair, não há cidadania activa, estão entregues a dirigentes políticos analfabetos.
Quando cheguei a casa vi um documentário sobre Milan Kundera, um dos meus escritores preferidos. Ultimamente tenho andado a aproveitar todos os minutos para reler a sua Obra, e em alguns casos ler pela primeira vez alguns dos seus títulos. O documentário também é para voltar a ver. Às quatro da manhã vou para a cama, mas continuo a ler "A Arte do Romance", onde o realizador do documentário foi buscar muitas frases que alimentam o filme sobre a sua vida e o seu pensamento. Não tenho sono, e acho um desperdício dormir com "A Valsa do Adeus", "A Brincadeira" e os dois volumes de "A Insustentável Leveza do Ser", à espera em cima da cómoda, embora com as marcas do tempo. Foi por causa da adaptação para cinema deste romance que o autor se zangou com o mundo, deixou de dar entrevistas e prometeu que mais nenhum dos seus romances serviriam outros interesses que não a leitura. No entanto, foi o filme que lhe deu projecção mundial, que fez com que o seu nome seja hoje muito mais popular, embora a Obra magnífica. “O artista deve fazer crer à posteridade que não viveu”. A vida privada de um homem e o seu rosto não pertencem ao público”. “Do esboço à Obra o caminho faz-se de joelhos”. “São precisas várias vidas para fazer uma só pessoa”. “O quarteto op. 131 ( de Beethoven) é o máximo da perfeição arquitectónica”. E, se bem me lembro, nessa noite de sábado sonhei pela primeira vez que dormi dentro das páginas de um livro, muitos anos depois de ter alimentado a ilusão que um dia podia encontrar Milan Kundera a passear em Paris, à beira do rio Sena, folheando livros e perguntando o preço das gravuras antigas. JAE.