Opinião | 25-12-2024 21:00

As moscas como musas poéticas, a consoada sem um único prato do nosso Natal e a economia circular aplicada às prendas

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Celebratário Serafim das Neves

Celebratário Serafim das Neves
As moscas invadiram Muge e estão por todo o lado. Até na roupa dos estendais, como vi numas fotografias publicadas aqui no jornal. As pessoas lá da terra, ou seja, as vítimas, têm todas a mesma opinião. É preciso exterminá-las! Num referendo sobre o assunto, o extermínio vencia com cem por cento dos votos.
Apesar da sua presença em casas, restaurantes, cafés, as moscas não usufruem do estatuto de animais domésticos, como cães, gatos, periquitos ou peixinhos vermelhos. Elas não ladram, não miam, não é preciso gastar dinheiro a comprar-lhes rações, nem levá-las ao veterinário, nem pagar a sua incineração quando morrem, mas são discriminadas, tanto pelos cidadãos em geral, como pelas associações de defesa dos animais.
E, no entanto, as moscas não discriminam ninguém. Não são como os cães, por exemplo, que ladram e mordem a quem não for lá de casa e, às vezes, até aos donos mordem.
As moscas são animais democráticos, digamos assim, cuja democracia até é celebrada em verso, como nesta quadra do poeta popular, António Aleixo: “Uma mosca sem valor/Poisa com a mesma alegria/ Na careca de um doutor/ Como em qualquer porcaria”.
Um outro poeta português, António Keating, também elogia as moscas. Chama-lhes até “velhas amigas”. “Rápidas moscas divertidas/ perseguidas, perseguidas/ pequenitas, malcriadas/ Vocês, velhas amigas/ evocam-me tanta coisa.”
E mesmo o grande poeta espanhol, António Machado, citado no primeiro editorial de O MIRANTE, há 37 anos, com um verso de um dos seus mais célebres poemas, “Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar.”, escreveu um poema inspirado pelas moscas.
“Vós, as familiares/inevitáveis gulosas/vós, moscas vulgares/me evocais todas a coisas/ Oh, velhas moscas vorazes/como abelhas em Abril/ velhas moscas pertinazes/sobre minha calva infantil!/Moscas do primeiro fastio/ na sala familiar/ nas claras tardes de estio/em que comecei a sonhar! (...)”.
Em vez de estar à volta das moscas, sei que devia escrever sobre o Natal e não deixarei de o fazer. No inquérito da edição que assinalou, em Novembro, mais um aniversário do jornal, com um inquérito sobre Memórias e Tradições, muitos disseram que a tradição que nunca iriam deixar morrer, era a do bacalhau com batatas e couves, em família, na ceia de Natal.
Em criança eu não gostava de couves, nem de bacalhau e em adolescente sempre defendi a sua substituição, na ementa da consoada, por batatas fritas com bifes e ovos estrelados.
Depois habituei-me e passei a gostar, mas só percebi o que era a Tradição quando, no ano passado, tive uma ceia de Natal noutro país, com familiares daquelas paragens, em que na mesa não havia nem um único prato ou doce da nossa consoada, com excepção do amor e do espírito de união.
Também não havia troca de prendas, o que me impediu de praticar a economia circular habitual, de oferecer prendas que recebi em Natais anteriores e que nunca usei, ou de receber prendas que ofereci e que, em alguns casos, nem sequer foram desembrulhadas.
Um bacalhau tradicional
Manuel Serra d’Aire

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