Opinião | 09-01-2025 07:00

Abaixo os sonhos... vivam os velhoses

Abaixo os sonhos... vivam os velhoses

Já não há velhoses nem coscorões como antigamente. A massa de abóbora dá muito trabalho e exige ciência apurada na hora de cair na frigideira para fazer os filhoses. Em Lisboa ninguém sabe o que é isso de velhoses e em Santarém sabem, mas as lojas de proximidade estão às moscas porque os supermercados são mais que as moscas.

Na passada terça-feira, último dia do ano, caminhei por Lisboa e entrei nas principais pastelarias da antiga e bela cidade de Lisboa, há procura de velhoses. E não encontrei. Foi na pastelaria Mexicana que fui mais bem recebido, e me deram conversa três senhores idosos que trabalhavam ao balcão com ar atarefado. Tive que repetir o nome duas vezes em vários casos porque sempre entendiam filhoses em vez de velhoses. Com um sorriso rasgado, simpático, um dos mais novos do grupo da Mexicana disse-me que nunca venderam velhoses naquele balcão. "Deve ser algum frito tradicional de alguma região do país", afirmou o mais velho e igualmente simpático balconista da Mexicana, procurando consolar-me depois de lhes dizer que já tinha corrido Seca e Meca e não tinha encontrado o que procurava. O atendimento na Versalhes, no Galeto, nas pastelarias do Rossio e da Avenida de Roma foram um ver se te avias, sinal dos tempos em que o trabalho de balconista de pastelaria é uma roda viva, como aliás em muitas outras profissões.
Neste meio tempo liguei para quem estava do outro lado do telemóvel e fiquei a saber que o que eu tinha visto nas grandes superfícies comerciais da capital do país, por onde andei também em excursão, e depois nas pastelarias, repetia-se na capital do Ribatejo; com uma diferença, a mercearia no centro da cidade de Santarém, onde costumo comer velhoses de abóbora (também os há de cenoura e são igualmente bons) estava às moscas, e o dono do estabelecimento estava desolado porque para ele já nada é como dantes.
Como é evidente as grandes superfícies comerciais aproveitam o hábito dos portugueses seguirem o ditado de "onde mija um, mijam dois ou três", e toca de correrem todos para os espaços onde é muito mais fácil e simples encher o carrinho das compras e a variedade é muito maior. As lojas tradicionais que não têm uma lista de amigos, não fazem marketing de proximidade, não sorteiam um presunto na altura do Natal, não oferecem velhoses nem coscorões, essas estão condenadas, mais tarde ou mais cedo vão morrer na praia, mesmo que saibam nadar.
Portugal é um quintal, um jardim zoológico em obras, e acho engraçado que os meninos e os velhos da Versalhes e da Mexicana fiquem de boca aberta e sorriso escancarado quando lhes perguntamos se já não têm velhoses, e respondam, quando respondem, que não sabem o que é, e ficam a rir-se como se tivessem acabado de ouvir uma pergunta de um chimpanzé que aprendeu a falar com os visitantes do jardim zoológico. "Ah! o que você quer são sonhos , isso temos, estão ali", ouvimos algumas vezes como se os sonhos pudessem competir com os velhoses.
Depois deste episódio fui saber por que razão, até na nossa região, não há muito quem venda velhoses. Eis o motivo: a massa dá muito trabalho e é preciso ter um bom pasteleiro que não facilite, ou os velhoses ficam uma miséria e depois ninguém os quer. Fiquei a saber ainda que o mesmo se passa com os coscorões: aqueles lisos e estaladiços foram substituídos por uns de massa grossa, que se comem como uma sandes, porque os coscorões à antiga têm que ser fritos com a mesma massa dos velhoses, e precisam igualmente de um pasteleiro à antiga.
A minha mãe era um desastre, tal como eu sou, com as mãos, tanto a partir copos como pratos, e o mais que vier às mãos. Mas sabia fazer e fritar velhoses como ninguém. Ainda hoje os meus filhos falam dos velhoses da avó. Não há melhor maneira de festejar o Natal e a entrada de um novo ano que recordar os que partiram e que esperam por nós mais tarde ou mais cedo.


Neste final e início de ano vi-me a reler livros de uma vida de Rosa Montero (A Louca da Casa e A ridícula ideia de não voltar a ver-te), Lêdo Ivo; (Confissões de um poeta), Ana Hatherly (Tisanas), Jorge de Sena (Sinais de fogo), David Mourão Ferreira (Um amor feliz), Ovídeo (Metamorfoses e Arte de Amar), Baptista Bastos (Viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura), Camilo Castelo Branco (A queda de um anjo), Rainer Maria Rilke (Uma biografia sobre Rodin de quem foi secretário) Francoise Gilot (Uma Vida com Picasso: uma biografia que já li dezenas de vezes ao longo dos anos e que continua a ser inspiradora de um tempo e de algumas vidas que me fascinam e que me fazem continuar a viajar em corpo e espírito) e Marguerite Yorcenar (a Obra ao Negro ainda é o livro que eu mais admiro pela genialidade da escrita e da trama). Claro que falo de releituras de parte destes livros, mas o pretexto é falar deles para quem no início do ano procura referências literárias e não sabe para que lado se virar). JAE.

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