José Relvas e a probidade humana nos últimos séculos

A 5 de outubro de 1910 José Relvas foi o político escolhido para proclamar a Implantação da República da varanda da Câmara Municipal de Lisboa,Foi Ministro das Finanças do Governo Provisório de 12 de Outubro de 1910, embaixador de Portugal em Espanha, entre outros cargos. A sua Casa Museu, em Alpiarça, é considerada uma das mais importantes e valiosas do país.
O tempo da História não é o tempo dos jornais. Talvez mais ponderada que justiça da República Portuguesa, a História levava 50 anos, no mínimo, a formar-se, assim se dizia, quando andava nos bancos do Ensino Secundário. Felizmente já não se diz isso, já nem isso se deve pensar. Este introito serve apenas de mea culpa ao jornal, sua equipa e aos leitores de não ter a disciplina de um ritmo regular de “crónicas com gente dentro” que aqui tenho procurado trazer. Será naturalmente evidente que em história uma investigação rigorosa terá sempre mais qualidade na exata medida do tempo disponível, o qual naturalmente tem de ser regrado sob pena de nos perdemos, porque, na realidade, a “pesquisa nunca tem fim”, sustentam os mestres.
Assinalaram-se a 5 de março último 167 anos do nascimento de José Relvas (1858-1929), personalidade com quem, na medida-do-possível, “convivi” durante quase 14 anos. Trata-se de um dos grandes responsáveis por vivermos numa República, em dois momentos cruciais dos acontecimentos político, 1910 e 1919. Foi Relvas a introduzir na constituição o princípio sob o qual, na ausência de orçamento de Estado, se tem de governar em duodécimos, defendendo ainda o princípio da progressividade fiscal, legislou nesse sentido de forma atenta e avançada, na época. Embora muito rico, não era favorável às taxas fixas de imposto. Estas deveriam ser aplicadas consoantes os rendimentos. Já, o seu correligionário Jacinto Nunes (1839-1931) defendia que isso era uma ilusão de igualdade e todos deveriam pagar a mesma taxa percentual fixa ao Estado. Não é, porém, esse debate que queremos convocar agora.
Temos o «paladino dos vinhos do Sul”, “arauto da República”, por enérgico defensor da moralidade na vida pública. Nem para todos foi assim. Enquanto Ministro das Finanças, em 1911, foi invectivado por emprestar 30 contos a um amigo, quando ainda não era ministro e a legalidade dos empréstimos particulares estava liberalizada. Alguns gritaram “inveja”, outros só queriam saber mais. Demitiu-se por ter feito publicar no relatório oficial de uma auditoria à Casa da Moeda, cartas particulares do antigo diretor — o qual se havia suicidado por suspeitas de desvios para a Casa da Rainha — a um jornalista. Manteve-se no Governo, com o apoio de manifestações públicas. Foi acusado de criar uma repartição – a de fiscalização das sociedades anónimas — apenas para colocar amigos do mundo da música, não obstante a carreira e especialidade internacional dos mesmos como funcionários públicos. Foi, ainda, acusado de aceitar um cargo diplomático para não levantar ondas partidárias internas.
Em Espanha, ficou doente. Teve uma depressão nervosa, enquanto tentava evitar novas invasões armadas dos monárquicos, lideradas por Paiva Couceiro (1861-1944). Foi apodado de ser vaidoso e inábil, até pelos amigos políticos mais próximos. Endividou-se em mais 13 contos para manter a renda de um palácio, o aparato e o estilo de vida que o seu berço aristocrata e a sua educação achavam coerentes com a carreira diplomática (na época auferia da sua empresa cerca de 5 a 6 contos/ano). Demitiu-se por deixar de poder acumular funções de diplomata e de senador, apesar da autorização especial do parlamento que tinha. Não sem antes ser acusado de “trocatintas” pelo mesmo seu antigo professor, “paladino da boa moral e dos bons costumes”, que durante a monarquia lhe tinha metido uma cunha para um amigo, no tempo em que Relvas era vereador em Almeirim.
Deixando por fim a política, no momento em que os parlamentares, a pretexto da guerra, suspenderam sine die as eleições. Foi formalmente investigado por, alegadamente, ter pago, com dinheiros públicos, um telegrama pessoal. O seu filho fez uma espera ao redator na origem da denúncia e deu-lhe uns socos valentes. Ferido na masculinidade, o jornalista disse na edição seguinte que ainda que “dera mais do que levara”, ao rapaz de vinte tal anos. Menos atreito à violência física, o pai Relvas pediu uma investigação rápida e a polícia conclui pela falsidade do telegrama.
Neste exercício de “advogado do diabo”, haveria mais para contar, já me dizia a minha avó Emília: “ai de quem não tenha inimigos”. Todavia, isto tudo se passou entre 1907 e 1915, consideremos como segurança, que quer Relvas, quer os seus inimigos, como sinceros maçons, como sinceros cristãos ou até, tantos, como verdadeiros canalhas, acreditariam que a sociedade estava condenada ao progresso material, espiritual e humano. Estaria?
Continuemos a confiar na divina providência e a seguir o princípio de São Lucas e da Augusta Ordem: “[…] Não julgues ao de leve as acções dos outros; louva pouco e censura ainda menos; lembra-te de que para bem julgar os homens é preciso sondar as consciências e perscrutar as intenções […]” (Anaurt, 1996, p. 90).
Referências:
ARNAUT, António (1996), Introdução à Maçonaria, Coimbra: Fora do Texto.
NORAS, José Raimundo (2022), A ação política e o ideário social de José Relvas (1858-1929)
Vol. I, Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, sob orientação do Professor Doutor António Ventura, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), Lisboa: UL, disponível em linha em: http://hdl.handle.net/10451/55954.