Joaquim Veríssimo Serrão: um homem comprometido com políticas de direita mas com um coração de esquerda

Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.
Não posso dizer que fui amigo de Joaquim Veríssimo Serrão mas fui quase. Só o facto de a História não ser uma das disciplinas que mais cultivo não fizeram maior a nossa convivência e amizade. Joaquim Veríssimo Serrão fazia amigos com facilidade e era visceralmente um homem que gostava de ser útil aos outros. Conhecia todas as regras de um diplomata, cavalheiro e bom samaritano, não por ser um genial Historiador e Professor, mas por ser, acima de tudo, uma pessoa boa.
O centenário do seu nascimento, que se comemora a 8 de Julho, vai ser aparentemente assinalado com a prata da casa, o que será muito pouco para o que ele merece e Santarém lhe deve. A já anunciada cerimónia incluiu gente bem intencionada, nada nos faz duvidar disso, mas é só mais uma iniciativa à boa maneira local: convidam-se os professores doutores do costume, assim como os doutourandos, e está garantido o sucesso da iniciativa. Santarém tem lepra quando é preciso mostrar grandeza e orgulho. Parece que o 25 de Abril não mudou mentalidades em certos sectores da sociedade. Não escrevo mais sobre este problema escalabitano, que tem raízes noutros concelhos, porque seria bater no ceguinho se trouxesse aqui o que penso da instituição que foi fundada para valorizar o trabalho de Joaquim Veríssimo Serrão, o seu nome e a sua obra.
Joaquim Veríssimo Serrão era, para as plateias, um homem de grandes formalidades; entre amigos era uma pessoa normal que contava anedotas, desdenhava dos cretinos e dos lambe-botas, dizia o que tinha de dizer dos filhos e dos amigos, sabendo que a conversa não passava de boca em boca; era ainda uma pessoa muito pouco tolerante com os que, intelectualmente, andavam habitualmente muito bem vestidos mas traziam sempre as cuecas cagadas de muitos dias de uso.
Num país culto e politicamente evoluído, que não o nosso, aprisionado por interesses inconfessáveis daqueles que continuam a governar sem cultura democrática, os livros que cito neste texto eram de leitura obrigatória nas universidades e em todos os fóruns onde se discute o futuro do mundo e dos homens, a injustiça e a solidariedade entre os povos.
O livro "Correspondência com Marcelo Caetano 1974-1980", tem uma história que merece outro livro. Algumas cartas antes de serem entregues ao remetente foram lidas num acto de censura que não se justificava no período que já se tinha vivido em democracia e, segundo sabemos, algumas dessas cartas ficaram inéditas. Escrevo de cor, do que ouvi a pessoas amigas, não tenho qualquer relação com a família ou com o Centro de Investigação com o seu nome, embora receba com regularidade os convites para as sessões, mas não preciso de ajuda para considerar este livro de republicação obrigatória no centenário do seu autor, ainda por cima numa altura em que a revolução de Abril já completou meio século. Sim, o livro é sobre amizade, confiança, solidariedade e revolução, e sobre censura e falta de respeito pelos valores e direitos humanos que nenhum 25 de Abril consegue implantar definitivamente para todas as pessoas, sem excepção, ontem como hoje.
Compreendo os que ainda têm medo de se colarem à memória do ilustre Historiador, principalmente pelo que ele escreveu em “Confissões no Exílio”. O que lá está escrito ninguém poderá ignorar, sequer rasgar, de forma a fazer desaparecer as opiniões do autor sobre Salazar e Marcelo Caetano. Nada disso envergonha ou deve limitar a palavra ou a admiração pelo Homem, o Historiador e o escalabitano ferrenho. Joaquim Veríssimo Serrão era um homem assumidamente de direita, devido às suas amizades e à fidelidade canina que gostava de exibir, muitas vezes até de forma exagerada. De coração era um esquerdista. Quem conseguisse chegar à fala com ele podia contar com o que precisasse se estivesse ao seu alcance.
Temo que as novas gerações não venham a conhecer, principalmente nas escolas e universidades, um homem brilhante, que dedicou toda a sua vida a escrever a História de Portugal e a lutar pelos seus ideais, pelos seus amigos e pelo seu país, na grande maioria das vezes escrevendo para dar testemunho.
Santarém não pode confiar a Obra e a memória de Joaquim Veríssimo Serrão só a quem se sente herdeiro do seu legado. A sua herança ainda incomoda e condiciona muita gente que ficou presa ao passado recente. Por isso é preciso ver mais longe, sentir mais de perto, julgar sem sentenciar, homenagear sem sentimentalismos bacocos.
Santarém já não é só "um livro de pedra" como lhe chamou Almeida Garret. Santarém de hoje é, também, uma pedra no sapato de muita gente que tenta varrer a importância da cidade e das suas gentes para os buracos das muralhas milenares. Joaquim Veríssimo Serrão não ganhou o prémio Nobel como José Saramago, mas estão os dois por aí, mais perto ou mais longe, a contribuírem para que a História se vá reescrevendo, e a darem o exemplo que não pode nem deve ser desperdiçado pelas novas gerações; também porque é cada vez mais raro encontrar gente com coluna vertebral, que não se verga a interesses mesquinhos, que não vive de joelhos nem renega os seus ideais por mais que isso lhe custe os olhos da cara. JAE.