Leila Slimani, Carla Madeira, Arturo Pérez-Reverte, Juan José Millás e a fraqueza de quem tem o poder

O juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna.
Nos últimos dias já visitei mais vezes a Feira do Livro de Lisboa do que nos últimos três anos. A Feira do Livro de Lisboa também é uma feira de vaidades. Os livros baixam de preço até 30% mas a grande maioria já está nos sítios dos alfarrabistas, ou numa qualquer feira, a menos de 50% do custo inicial. A questão aqui é a Feira, o espaço, o convívio, o livro que é pretexto para ir dar uma volta, comer uma fartura, beber um café, marcar um encontro, e encontrar acima de tudo. A Feira é um grande negócio para quem a organiza e uma forma de os grandes grupos editoriais fazerem a promoção das suas marcas. As vendas devem ter muito pouca importância, a levar em conta que o mesmo título do mesmo autor muitas vezes enche uma estante inteira. E os pavilhões são pequenos. E cada um custa quase dois mil euros. Por isso há grupos editoriais que alugam dezenas deles para mostrarem importância e grandeza. E há editores que deixam lá as suas barbas porque nem devem ganhar para o que comem.
Este ano encontrei logo nos primeiros dias duas escritoras excepcionais de quem gostava de ser amigo. Carla Madeira e Leila Slimani: cada uma delas, separadas por meia dúzia de anos, escreveram dois romances eróticos como não conheço muitos, que deixam os textos de Henry Miller ou de Casanova a milhas de distância. Durante o tempo em que estive a observar as sessões de autógrafos, posso garantir que 80% dos leitores eram mulheres. "O Jardim do Ogre", da Leila Slimani, contra a história de uma mulher ninfomaníaca e o "Tudo é Rio", da Carla Madeira, conta a história de uma prostituta envolvida num triângulo amoroso. Mas estes dois títulos são, nos dois casos, apenas o início de carreira de duas grandes escritoras com livros que já venderam mais de um milhão de exemplares.
Conversei cinco minutos com Carla Madeira, que já é uma senhora de 60 anos, mas a minha conversa com Leila Slimani continua adiada. Leila Slimani não tem mãos a medir apesar dos seus 43 anos; se há alguém na literatura que nesta altura tem estatuto de vedeta é ela. Acaba de publicar o último livro de uma trilogia que conta a saga da sua família, mas antes destes três romances mais autobiográficos tem outros títulos que os seus futuros leitores têm que desbravar para se apaixonarem primeiro pelos seus primeiros quatro livros, entre eles Canção Doce, que é um romance de uma crueza incomum, que só pode ser contado por a sua autora ser genial e certamente a melhor discípula de Tahar Ben Jelloun.
Não me canso de citar Fernando Pessoa que escreveu que a literatura existe porque a vida não chega. No dia em que escrevo este texto encontrei uma entrevista com Juan José Millás que, a certa altura, conta que leu no jornal que “o juiz Juan Carlos Peinado foi entrevistar o Ministro da Justiça, Félix Bolaños, em Moncloa, e pediu uma tribuna. Isso é fantástico. Porquê? Porque ele não sabe interrogar ninguém a menos que esteja numa tribuna. Ou seja, a menos que esteja meio metro mais alto do que a pessoa interrogada. É assustador, mas exemplifica muito bem o que está a acontecer. Em outras palavras, um juiz vir interrogar uma testemunha, a um lugar, e pedir uma tribuna, porque senão ele não sabe interrogar... é um ponto de vista esclerosado; para ele, esse olhar de cima para baixo é o olhar do poder. E ele, para interrogar uma testemunha, tem que se sentir mais poderoso”. A citação está fora do contexto da entrevista mas vive bem sem ela. E resolvi aproveitá-la para introduzir aquilo que se passou com um amigo a quem dava trabalho para o ajudar a ganhar a vida. Numa das muitas vezes que entrei na sua empresa, certo dia mandou-me sentar num sofá no seu escritório para me fazer as queixinhas do costume. Só que desta vez acrescentou uma conversa incomum: perguntou-me se eu tinha dado pelo facto de estar sentado num sofá que me obrigava a olhar para ele de queixo levantado, de baixo para cima. Lembro-me de ter sorrido e ficado calado. Então ele explicou-me que estava farto de ser usado, que estava a obrigar todas as pessoas que iam à sua empresa a olharem para ele com a bola baixa, não aguentava mais tanta desfaçatez. Não é nada contigo, afirmou, mas queria que soubesses, explicou, como explicava muitas vezes o que lhe ia acontecendo na vida de menos bom, e que eu ouvia devolvendo algumas palavras de circunstância mas também de conforto. Esta história é antiga e desde essa altura que praticamente deixei de ver a criatura. Deixei de lhe dar trabalho e ele deixou de me aparecer pela frente. Há pessoas que só existem na nossa vida porque nós somos condescendentes, vamos beber todos os dias à nascente do rio e depois durante o caminho paramos para dar um pouco de água a quem não sabe que os grandes rios começam de uma pequena nascente e vão desaguar num grande estuário que, regra geral, é o mar.
Na mesma revista online (Zenda) onde li a entrevista com Juan José Millás pode ler-se uma crónica de Arturo Pérez-Reverte que se intitula “No dia em que me tornei nazista”, em que ele explica como conseguiu entrevistar um nazista a quem Franco deu nacionalidade espanhola e que estava escondido em S. Sebastian. Arturo Pérez-Reverte é outra grande figura da literatura e do jornalismo que me impele a meter a cabeça nos livros diariamente e a aprender a gostar de viver sempre com um livro debaixo do braço ou a sonhar que viajo nas histórias que vou lendo. JAE.