Opinião | 15-07-2025 11:15

Joaquim Fortunato de Novais (1769-1807), um arquitecto esquecido e a criação da povoação de Manique do Intendente

Joaquim Fortunato de Novais (1769-1807), um arquitecto esquecido e a criação da povoação de Manique do Intendente
Miguel Montez Leal

Diogo Inácio de Pina Manique idealizou uma vila própria que marcasse este território estremenho bem próximo de Lisboa. Para tal chamou casais de colonos portugueses para a povoarem e desejou que a riqueza da povoação assentasse no fisiocratismo que defendia o desenvolvimento agrícola e industrial. Subitamente todo este projecto megalómano ficou por concluir, pois Pina Manique faleceria em 1805, nas vésperas e ameaças do Império Napoleónico e das invasões francesas.

A povoação de Manique do Intendente, antigo Alcoentrinho ou S.Pedro da Arrifana(1), o seu primitivo nome, foi atribuída pela Rainha D. Maria I(1734-1816), a Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805), o famoso Intendente, que se tornaria, após uma longa carreira administrativa, burocrática e de chefia policial, no primeiro Senhor desta povoação. Alcoentrinho ficava muito próxima da Torre Bela do Duque de Lafões(2). Para tal mandou vir de várias partes do Reino, sobretudo das ilhas açorianas, colonos e teve o sonho inacabado de desenhar no campo estremenho uma localidade de traçado iluminista, com todas as marcas do poder central e local. Um pelourinho, símbolo de Justiça, uma Câmara Municipal, Tribunal e Cadeia e o seu solar. Ao mesmo tempo quis fazer daqueles casais povoadores e colonizadores, gente industriosa, mas não há memória, nem prova documental de qualquer tipo de indústria nesta localidade.

Em 1791 o senhorio desta povoação foi atribuído ao Intendente da Polícia, por decreto de 11 de Agosto de 1791. Foi desenhada de raiz uma povoação iluminista e geometrizada com Casa da Câmara, Tribunal, Pelourinho, símbolo da justiça e Igreja Matriz. Esta povoação foi priorado de apresentação régia e pertenceu até 1855 ao concelho de Alcoentre.

“Eu a Rainha...Faço saber que sendo me presente que o Doutor Ignácio de Pina Manique do Meu Conselho e Fidalgo da minha Casa, Desembargador do Paço, Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino Geral da Alfandega do Assucar e Feitor Mor das do Reino de Santa Maria da Orada e da Ordem de X .º(cristo) sobre os distinctos serviços que lhe tem feito, nos importantes cargos e comições que d’elle tenho confiado e que se tem feito dignos de toda a atenção e remuneração se tem também empregado como bom útil vassalo em promover a população, e agricultura principalmente no termo de Santarem, onde tem principiado a povoação denominada Alcoentrinho repartindo habitações e terras a diferentes cazaes de Moradores que com muita despeza, tem convocado e se propoem convocar adiantando o seu zello a querer edeficar na mesma Povoação huma decente Igreja Parrochial, donde possão receber os Moradores e Fregueses os necessarios secorros da igreja que a antiga arruinada e fundada em lugar Ermo e improprio nao podia comodamente ministrar lhes: Hei por bem em em consideração do referido e para que de futuro conste da particular estimação que faço do ditto Deembargador Diogo Ignacio de Pina Manique e de quanto me são agradáveis os seus serviços, fazer-lhe muito e honrado da maneira seguinte: Ordeno que a ditta Povoação se denomine daqui em diante Manique do Intendente Que seja Senhorio do Sollar para elle e para todos os seus descendentes successores da sua Casa intittulandose e todos Senhores de Manique. Que sejão lemites do Sollar e Senhorio a Freguesia em que está a ditta Povoação. Que esta seja criada Villa, srvindo lhe de termo a Freguesia.

Logo que nela houver cento e vinte vezinhos , devendo então haver Juizes e Vereadores aprovados na forma da Ley, pelos Senhores do Sollar: Que da mesma sorte, e com as mesmas naturezas, seja anexa ao sullar o Padroado da mesma Igreja, e Freguesia; Logo que estiver construída a nova como elle propoem: Havendo eu por bem ceder para este effeito do Padroado , que tenho na Igreja de S. Pedro de Arrifana que até agora servia, e que acha em ruina e mal cituada. Pelo que Mando a esta Meza do Meu Desembargo do Paço que sendo lhe aprezentado este Alvará por mim assinado, registado no Registo geral das Mercês e passado pela Chancelaria Mor da Corte e Reino, lhe fação passar Carta desta Mercê, na qual se transladara este Alvará que se cumprirá inteiramente como nelle se contem pondosse as verbas necessarias a margem do Registo do Decreto porque foi expedido. Lisboa, 11 de Julho de 1791 annos.

Rainha//Luis de Vasconcelos e Sousa Presidente//Por Decreto de sua Magestade do primeiro de Julho de 1791 José Frederico Ludovice a fez escrever e ficou escrita em Lisboa a 23 de Julho de 1791 assina Gerónimo Correia de Moura”(3).

Fotografia do autor. Casa da Câmara, vendo-se no frontão triangular o brasão de armas do 1º Senhor de Manique do Intendente.

Diogo Inácio de Pina Manique idealizou uma vila própria que marcasse este território estremenho bem próximo de Lisboa. Para tal chamou casais de colonos portugueses para a povoarem e desejou que a riqueza da povoação assentasse no fisiocratismo que defendia o desenvolvimento agrícola e industrial. Subitamente todo este projecto megalómano ficou por concluir, pois Pina Manique faleceria em 1805, nas vésperas e ameaças do Império Napoleónico e das terríveis invasões francesas de Junot, Soult e Massena, que tão nefastas foram no País e em especial no corredor que vai de Abrantes até Lisboa. Não podemos nem fazer história retrospectiva, nem probabilística, nem alternativa, mas arrisco-me a dizer que mesmo que o Intendente tivesse alcançado os 80 anos de idade, provavelmente esta grande empreitada ficaria em suspenso, dado o contexto da futura Guerra Peninsular (1808-1811).

O palácio de Pina Manique, de grande escala, ficou por concluir. O casario térreo circundante ficou também por terminar, assim como a praça monumental.

2) Foto do autor: pormenor da Casa da Câmara

Afirma Paulo Varela Gomes(4):

“O palácio de Pina Manique é do tipo de Mafra, do hospital militar de Runa e de variadíssimos casos por toda a Europa, ou seja, desenvolve-se em volta de uma igreja pública com fachada para a rua, centralizando a frente principal do bloco construído. Das ruínas existentes, pode deduzir-se o aspecto desta frente e, a partir da planta, percebe-se que ainda há muito, aqui, por investigar: é estranho o facto de o palácio estar dividido pela igreja em dois sectores aparentemente iguais ou parecidos (o sector nascente não foi acabado) que só comunicam entre si pela tribuna alta da igreja.”

Diogo Inácio de Pina Manique nasceu a 3 Outubro de 1733, e era filho de Pedro Damião, Cavaleiro da Ordem de Cristo, moço fidalgo e detentor do ofício de escrivão desta ordem religiosa e militar. A sua mãe era Helena Inácia de Faria. A sua família descendia pelo ramo paterno de pequenos fidalgos, senhores do morgadio de S. Joaquim, em Coina (hinterland do actual Barreiro), e passou a ser Intendente-geral da Polícia, Desembargador dos Agravos da Casa de Suplicação, Contador da Fazenda, Fiscal da Junta de Administração da Companhia de Pernambuco e Paraíba.

Em 1781 começa a funcionar no castelo de S. Jorge, a Casa Pia, instituição inicialmente destinada a recolhimento de pobres, mendigos e órfãos e que se transformou num grande estabelecimento de ensino. A pedido de Napoleão Bonaparte, o Príncipe Regente D. João (futuro D. João VI), acedeu ao pedido de demissão do Intendente Pina Manique, “pulso de ferro” e censor de todos os ideais difundidos pela Revolução Francesa de 14 de Julho de 1789. Ao longo do seu percurso foi Juiz do Crime em vários bairros de Lisboa, Desembargador da Relação do Porto, Desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação, encarregado do exército e do fornecimento de lenha para a guarnição de Lisboa, pedida pelo Conde de Lippe (1724-1777). Após o passamento do Secretário do Reino, 1º Conde de Oeiras e 1º Marquês de Pombal, passou a acumular ainda mais cargos no reinado de D. Maria I.

Os Pina vieram de Aragão e os Manique teriam vindo para Portugal nos finais do século XVI ou inícios do século XVII. Pensa-se que o apelido é uma corruptela e um aportuguesamento de um apelido flamengo, Meineken ou germânico ou até retirado dos vários topónimos Manique que existem pelo país fora(5). Foi 1 º Senhor de Manique do Intendente, 4º Senhor do Morgado de São Joaquim, na Vila de Coina, Intendente Geral da Polícia, Chanceler-mor do Reino, Desembargador do Paço e fundador da Casa Pia de Lisboa. Era formado em Leis pela Universidade de Coimbra. Casou com uma senhora de origem fidalga, mas não nobre, Umbelina Brito Nogueira de Matos em 1773, filha de um Monsenhor da Igreja Patriarcal. Falece a 30 de Junho de 1805.

5- Foto do autor: brasão de armas de Pina Manique.

Joaquim Fortunato de Novais foi um dos cinco pensionistas que Pina Manique enviou a suas expensas para estudar na Academia em Roma durante cinco anos. Voltou munido de uma cultura sólida, arquitectónica, urbanística, lera e estudara muitos dos tratados de arquitectura e ampliara a sua cultura visual. A si se devem os principais edifícios desta povoação, que como um sonho, ficou inacabada. Diogo Inácio de Pina Manique faleceria em 1805 e este seu arquitecto, em 1807. Joaquim Fortunato de Novais esteve em Roma entre 1785 e 1791 ou 1794, subsidiado pela Casa Pia. Nasceu em Lisboa, na Freguesia de Santa Engrácia, a 24 de Outubro de 1769. Era filho de António de Pinho (natural da Freguesia de S. Cristóvão, Ovar) e de Teresa Inácia (natural da freguesia de Nossa Senhora dos Olivais, Lisboa, filha de João da Silva e de Bernarda Teresa). O seu padrinho de baptismo foi Ventura José de Novais e Joaquina Rosa. Tal como era uso à época ficou com o apelido de família do seu padrinho. Regressado de Roma onde estivera cerca de cinco anos, entre 1785 e 1791 ou 1794, casou em 1796 com Teresa de Jesus, natural de S. Pedro, Manique do Intendente. Terá vivido durante o estaleiro de obras nesta povoação.

6) Registo de baptismo de Joaquim Fortunato de Novais, ANTT, Registos Paroquiais, Lisboa, Baptismos, Freguesia de Santa Engrácia, 24 de Outubro de 1769.
7) Registo de casamento de Joaquim Fortunato de Novaes com Teresa de Jesus. A.N.T.T. Registos de Casamentos, Freguesia de S. Pedro da Vila de Manique, 15 de Março de 1796.

A beleza do suspenso e inacabado

A povoação de Manique do Intendente com a sua planta iluminista delineada(7) e os seus principais edifícios e monumentos- os que estão ligados ao poder, com um solar e com uma Igreja que pontua e se destaca no corpo central do edifício, a Casa da Câmara, o Tribunal e o Pelourinho- numa monumental praça hexagonal para onde se dirigem ruas com nomes de imperadores e generais romanos, em azulejos decorativos pintados na Fábrica de Cerâmica do Rato, com os nomes em letras maiúsculas(Justiniano, Augusto, Trajano, Sertório, César... ) e ao início de uma nova linhagem surgida no reinado de D. Maria I, ficou por concluir, assim como grande parte do casario, casas de morada uniformes e austeras, cobertas de telha vã dos primeiros colonos e povoadores, mas fica-nos como uma metáfora do sonho de um homem autoritário, tal como muitos outros com funções de comando no seu tempo, e como um símbolo da efemeridade de tudo a que o homem aspira e consegue concretizar na sua vida.

A sua própria beleza reside no facto de ter ficado suspensa e congelada no tempo, uma ruína parcial que parece esperar o regresso do antigo Intendente do Reino de Portugal. Tal como as chamadas “capelas imperfeitas”, no Mosteiro da Batalha, na verdade, capelas inacabadas, possuem a sua beleza e nos fazem contemplar o céu naquele monumento radioso cuja luz, ao incidir sobre a sua pedra com mais de seis séculos, nos faz tentar imaginar e contemplar algo que nunca foi terminado e que por isso mesmo tem a beleza do suspenso, do efémero e de uma possível continuidade. Diogo Inácio de Pina Manique não pode já assistir à conclusão da sua Vila, mas mais de duzentos anos depois esta permanece habitada e com vida, e muitos dos que lá moram descendem destes primitivos colonos e povoadores. É um caso ímpar e invulgar no panorama da história e da arte nacional, que requer um aprofundamento do seu estudo e investigação, apesar de pequenas alusões que vão sendo feitas e até de uma tese de mestrado de Cátia Gonçalves Marques que até agora constitui o seu estudo mais rigoroso e documentado. Quanto ao seu arquitecto ou arquitecto principal, cremos que é a primeira vez que são apresentados dados documentados da sua biografia, através dos registos paroquiais do seu baptismo (em Lisboa) e do seu casamento. Este pequeno ensaio constitui apenas uma breve aproximação a muito do que está ainda por fazer em relação à investigação, patrimonialização e restauro da Vila de Manique do Intendente que tem vindo a sofrer uma grande descaracterização arquitectónica e que se tem acentuado neste primeiro quartel do século XXI.

Fontes:

Registos paroquiais de Lisboa:
Baptismos da Freguesia de Santa Engrácia;
Baptismos da Freguesia de Nossa Senhora dos Olivais;
Casamentos da Freguesia de S. Pedro, Manique do Intendente
AAVV, Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve (apresentação de Sant’Anna Dionísio), Texto integral que reproduz a 1ª edição publicada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1927.

Bibliografia:
NORTON, José, Pina Manique, Fundador da Casa Pia de Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, Janeiro de 2004.
FRANÇA, José-Augusto, História da Arte em Portugal, O Pombalismo e o Romantismo, Vol. 5, Editorial Presença, Lisboa, 2004.
GOMES, Paulo Varela, Expressões do Neoclássico, Vol. 14 da Colecção Arte Portuguesa, Da Pré -História ao Século XX (Coordenação de Dalila Rodrigues),IMC e IGESPAR, 2009.
PEREIRA, Paulo, Arte Portuguesa, História Essencial, Temas e Debates/Círculo de Leitores, Junho de 2011.
PEREIRA, Paulo (Direcção de), História da Arte Portuguesa, Volume III, Círculo de Leitores, Agosto de 1995.
RODRIGUES, António José, Manique do Intendente, Junta de freguesia de Manique do Intendente,Gráfica Povoense , Lda. Março de 2005

SOLEDADE, Arnaldo F., De S. Pedro de Arrifana a Manique do Intendente (subsídios para a sua história), Edição de Festas, Manique do Intendente, Agosto de 1979

NOTAS:
1)Vide Arnaldo F. Soledade, De S. Pedro de Arrifana a Manique do Intendente (Subsídios para a sua História), Edição da Comissão de Festas, 1979, Manique do Intendente, Agosto de 1979, pp.33-39.
2)O título de Duque de Lafões foi criado por decreto de 17 de Fevereiro de 1718 pelo monarca D. João V para o seu sobrinho D. Pedro Henrique de Bragança, filho do Infante D. Miguel de Bragança, filho ilegítimo de D.Pedro II com uma senhora francesa, Ana Armanda de Vergé. A herdade da Torre Bela é a maior propriedade murada em Portugal, situada no concelho da Azambuja, composta por cerca de 1700 hectares.
3)Decreto do Senhorio a 11 de Julho de 1791, Chancelaria Régia de D. Maria I, a Livro 39, fólios 209, A.N.T.T.
4)Vide Paulo Varela Gomes, Expressões do Neoclássico, Vol. 14 da Colecção Arte Portuguesa, Da Pré -História ao Século XX (Coordenação de Dalila Rodrigues),IMC e IGESPAR, 2009.
5)Vide José Norton, Pina Manique, Fundador da Casa Pia de Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, Janeiro de 2004.
6)Vide Paulo Varela Gomes, Expressões do Neoclássico, Vol. 14 da Colecção Arte Portuguesa, Da Pré -História ao Século XX (Coordenação de Dalila Rodrigues),IMC e IGESPAR, 2009, p. 120.
7)Vide Cátia Gonçalves Marques , Manique do Intendente, uma vila iluminista, Prova final de Licenciatura em Arquitectura, Coimbra, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2004 (orientação do arquitecto Rui Lobo).

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