Opinião | 19-07-2025 09:27

A famosa Quinta da Mafarra nos arredores de Santarém

A famosa Quinta da Mafarra nos arredores de Santarém
Miguel Montez Leal

Um pouco de História sobre a famosa Quinta da Mafarra, que em meados do século XIV pertencia a D. Maria Esteves Mafarra, abadessa do Convento de Santa Clara, em Santarém. O Convento de Santa Clara veio a herdar esta propriedade, além de outros bens imóveis. Na capela desta propriedade vê-se num epitáfio o nome desmaiado de uma D. Mafalda e assim durante muitos séculos, até aos finais do século XIX, esta era conhecida como Quinta da Mafalda.

“Hoje o Ribatejo começa quase às portas de Lisboa, em povoações fabris que escritores como Alves Redol e Pereira Gomes fotografaram nos seus romances. As salinas da margem direita colocam na paisagem, quando secas, a aguda alucinação dessa brancura ácida que têm os cristais. Nos dias de sol ofuscam tudo em redor. São pequenos montes de urze quente que atraem os olhares e dissimulam as lezírias e os mouchões da outra margem. Enquanto delas só nos apercebemos pela superfície lisa dos seus canteiros de água parada, as salinas quase não ocupam lugar definido no conjunto realizado por um Tejo calmo, uma via férrea que corre paralela ao rio, entre terrenos planos que janeiro reverdece e só o Estio amarela. Nessa paisagem de olivedos e terras arruinadas as velas que rasgam a quietude do dia levam consigo um modesto sonho que nunca poderia igualar-se ao da aventura nos mares.” (1) Natércia Freire


A história desta propriedade é muito antiga e está associada a várias lendas. Certo é que em meados do século XIV pertencia a D. Maria Esteves Mafarra, abadessa do Convento de Santa Clara, em Santarém. O Convento de Santa Clara veio a herdar esta propriedade além de outros bens imóveis. Na capela desta propriedade vê-se num epitáfio o nome desmaiado de uma D. Mafalda e assim durante muitos séculos até aos finais do século XIX esta era conhecida como Quinta da Mafalda(2).

Para os scalabitanos e naturais da Azóia, Várzea e arredores esta propriedade que se situa a 5 Km da cidade, está indelevelmente ligada ao nome da família Oliveira Feijão. Francisco Augusto Oliveira Feijão foi um dos médicos de cabeceira do Rei D. Carlos. Nos finais do século XIX e inícios do século XX retirou-se para o campo, mas não para muito longe de Lisboa, adquirindo esta propriedade à família Ribeiro de Oliveira Freire, mais concretamente a Henriqueta Ribeiro d’ Oliveira Freire. Esta família, muito prolífica e com uma vastíssima descendência foi sua proprietária durante duas gerações. Alguns destes Ribeiro de Oliveira Freire estão sepultados na Igreja da Várzea(3). Em 1928 a propriedade possuía 137 hectares, dos quais 128 eram olivais. Era então seu dono Manuel Lima de Oliveira Feijão, que a recebeu do tio médico.

1. Casamento do capitão Francisco António Teixeira Sobral com D. Joana Emília de Groot da Costa Freire Fólio da esquerda, primeiro registo acima.

Maria Henriqueta, nascera na Freguesia dos Anjos, em Lisboa em 1826, e era filha do capitão Francisco António Teixeira Sobral e de D. Joana Emília de Groot da Costa Freire. Maria Henriqueta casou com o lisboeta Francisco Ribeiro de Oliveira Freire(Sénior), natural da Freguesia dos Mártires, em Lisboa, nascido em 1801. Este casal teve uma vasta prole, entre eles Francisco Ribeiro de Oliveira Freire Jr. (Lisboa, Freguesia de Santa Justa, 23/10/1847-1937) que casou na Freguesia de S. João da Praça, em Lisboa, a 12 de Maio de 1873, com Gertrudes Nogueira Bello, natural da Azóia, Santarém, nascida a 30 de Janeiro de 1854 e falecida em 1934. Francisco Ribeiro de Oliveira Freire (Jr.) estudara no Colégio Saint Louis, no Porto e este casal teve também uma vastíssima prole. A maioria dos seus filhos nasceram ainda nesta quinta, que depois foi vendida por Maria Henriqueta d’ Oliveira Freire, por motivo de partilhas entre maiores. O anúncio da sua venda foi colocado no “Diário Ilustrado”, periódico de Lisboa( saiu na 5a Feira, 29 de Novembro; veja-se a página 4).

O Dr. Francisco Augusto Oliveira Feijão comprou a quinta da Mafarra à família Ribeiro d’ Oliveira Freire.Este médico nasceu em Almada a 24 de Novembro de 1850 e faleceu nesta quinta a 11 de Novembro de 1918, tendo aí passado os últimos anos da sua vida. Foi médico do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia e também de muitos diplomatas, poeta na sua mocidade, poliglota, dominando o francês como língua materna, e o latim de que era um profundo conhecedor, assim como conferencista, filantropo, político - como deputado independente - congressista e professor. Após o regicídio retirou-se definitivamente para esta sua propriedade, deixando de frequentar os salões e tertúlias aristocráticas e diplomáticas lisboetas, dedicando-se ao estudo da indústria agrícola e tentando sempre melhorar as condições de vida de quem vivia a seu lado ou que para si trabalhava. Os olivais e a pecuária, o gado ovino e caprino foram objecto de estudo e ganharam prémios fora de Portugal. Foi também caçador e assistia às ferras naqueles campos agrícolas. Nos últimos anos da sua vida e após a implantação da República, dedicou-se exclusivamente à lavoura e ao ensino, deixando também de exercer a medicina. O historiador Alexandre Herculano, muitos anos antes, também se exilara em Vale de Lobos.

2. Dr. Francisco Augusto Oliveira Feijão, “o Senhor da Mafarra”.

A quinta era próspera e rica. Possui actualmente o mesmo portão de ferro forjado donde se avista um caminho de terra batida que conduz a uma grande casa pintada em rosa velho, casa de numerosas divisões, com capela e com diversos edifícios e cómodos agrícolas.

Da descendência destes Freire que se espalharam por diversas cidades de Portugal e até para o Brasil, destacaram-se, no campo das Letras, a poetisa Natércia Freire(Benavente, 1919- Lisboa, 2004), e a sua irmã Maria da Graça Azambuja(Porto de Muge, 1919; Benavente, 1993). Nos tempos actuais o romancista e poeta Pedro Sena-Lino, neto materno de Natércia Freire, é professor assistente de Português na Universidade de Ghent e maître de langues na Universidade Católica de Lovaina, autor de romances históricos como De Quase Nada a Quase Rei, Biografia de Sebastião José de Carvalho e Melo ou El-Rei -Eclipse Biografia de D. João V.

Os Freire eram naturais de Lisboa, e conseguimos recuar até Lourenço Freire, em meados do século XVII, morador em S. Domingos de Benfica, Lisboa. A sua prole deslocou-se depois para o Chiado e Baixa lisboeta, vindo alguns ramos para o Ribatejo. Os Ribeiro eram naturais do hinterland de Seia, São Romão e outras freguesias beirãs. Em 1760, Domingos Ribeiro, natural da Freguesia de São Romão(Seia) casou com Maria dos Anjos Freire, na Basílica dos Mártires, no Chiado. Surgia assim a família e o apelido composto Ribeiro d’ Oliveira Freire, que em alguns ramos chegou até aos dias de hoje.

Os de Groot (4) são uma família flamenga, natural de Bruxelas que vieram para Portugal nos finais do século XVII. Comerciantes de grosso trato, moradores no Largo de S. Paulo, em Lisboa e com negócios e propriedades na margem sul e na capital casaram com os Costa Freire, os Salter (descendentes de Edward Salter- em Portugal o seu nome foi aportuguesado para Duarte Salter- família nobre inglesa que vieram para o reino aquando do regresso da Rainha-consorte viúva, Rainha de Inglaterra, D. Catarina de Bragança(5), que casara com o Rei Carlos II de Inglaterra e que trouxe consigo a sua Corte composta por açafatas castelhanas, portuguesas e alguns nobres britânicos) e muitas outras famílias lisboetas, algumas delas com origens nortenhas. Todos estes ramos ancestrais são antepassados directos destes Ribeiro d’ Oliveira Freire.

A casa da quinta da Mafarra (6) viu os seus interiores serem pintados a fresco pelo famoso pintor-decorador, cenógrafo, pintor de cavalete e mestre azulejista, José Maria Pereira Cão(Setúbal, 1841-Lisboa, 1921), o mesmo artista que pintara em Santarém a casa do negociante Alexandre da Silva Telhada ou o primitivo Teatro Rosa Damasceno, que possuía os tectos pintados com as principais actrizes de teatro da época, como a conhecidíssima Rosa Damasceno, no actual centro histórico da cidade.

Este edifício foi infelizmente demolido para dar lugar ao actual teatro modernista Rosa Damasceno, que de momento, na bela avenida que se dirige até às Portas do Sol, se encontra em decadência e ruína e que em breve irá ser recuperado. Também em Almeirim, Pereira Cão pintara a Quinta da Alorna, quando esta pertencia à Condessa de Junqueira e a conhecida Quinta da Fontebela, no concelho do Cartaxo, então pertença da família Ribeiro Ferreira, propriedade construída em pedra maciça, o que era invulgar nesta região,e que é conhecida naquele pedaço da Lezíria como “a Catedral do Vinho”.

Maria Emília Pedro da Cunha, lisboeta nascida no bairro da Lapa, em 1886 casa com João Ribeiro de Oliveira Freire, nascido na Quinta da Mafarra, em 1881, e chefe da Conservação da Hidráulica Agrícola. Da sua descendência distinguiram-se como poetisas e escritoras, como antes afirmámos, Maria da Graça Freire, que adoptou o pseudónimo literário de Maria da Azambuja e Natércia Freire, que casaria com José Isidro dos Santos.


3. A poetisa Natércia Freire.

Poema de amor

Teu rosto, no meu rosto, descansado.
Meu corpo, no teu corpo, adormecido.
Bater de asas, tão longe,noutro tempo,
Sem relógio nem espaço proibido.
Oh, que atónitos olhos nos contemplam,
nos sorriem, nos dizem: Sossegai!
Românticos amantes, viajantes eternos,
olham por nós na hora que se esvai!
Que música de prados e de fontes
Que riso de águas vem para nos levar!
Meu rosto, no teu rosto de horizontes,
Meu corpo, no teu corpo, a flutuar.

Natércia Freire, in “ Antologia Poética”.


Poucos serão no presente os scalabitanos que se recordam desta família e sempre associam esta propriedade à família Oliveira Feijão ou às indústrias cervejeiras que ali se instalaram nas últimas décadas, perto da autoestrada, quase encobrindo esta quinta, uma das maiores do concelho de Santarém.

José Varzeano nascido nesta aldeia tem sido o seu erudito local que honra o seu torrão natal, que nos delicia quando lemos a sua monografia escrita ao correr da pena, fixando muitos detalhes e nos lança pistas para futuras pesquisas. Também Virgílio Arruda, fundador de o “Correio do Ribatejo” escrevera sobre o “Senhor da Mafarra”, o brilhante médico Dr.Oliveira Feijão que acompanhou o Rei D. Carlos e a Rainha D.Amélia na sua viagem aos Açores. Na Várzea e arredores foi um “João Semana”, um exímio cavaleiro hípico, amante das touradas e tradições locais e tudo fez para melhorar a qualidade de vida de todos os que viviam ao seu redor, acudindo aos seus problemas de saúde, além de ter adoptado as mais modernas técnicas agrícolas nesta sua vasta propriedade.



Bibliografia:

ARRUDA, Virgílio, “O Senhor da Mafarra- Oliveira Feijão- e a sua exemplaridade na Medicina e na Lavoura- o médico que tentou revolucionar a agricultura-” in “Correio do Ribatejo” de 30 de Novembro de 1978.

CÔRTE-REAL, Isabel, Da Memória, do Amor e do Génio, Fotobiografia de Natércia Freire, Alêtheia Editores, Várzea da Rainha Impressores, S.A., Lisboa, Outubro de 2016.

FREIRE, Natércia, O Ribatejo, Antologia da Terra Portuguesa, Livraria Bertrand, Lisboa.

FREIRE, Natércia, Obra Poética, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, tipografia Guerra-Viseu, 2 Vols., 1991 e 1994

SENA-LINO, Pedro, Só a Viagem Responde, sobre Maria da Graça Freire, Câmara Municipal de Benavente, Litera Pura, 2003.

NUNES, António Miguel Ascensão (José Varzeano), A Freguesia da Várzea (do concelho de Santarém)- Achegas para uma monografia, Junta de Freguesia da Várzea, Garrido Artes Gráficas, Alpiarça, 2005, pp. 341-342

Notas:

1. Vide Natércia Freire, O Ribatejo, O Ribatejo, Antologia da Terra Portuguesa, Livraria Bertrand, Lisboa, pp.12-13.

2. Quinta da Mafalda era o nome como durante séculos era conhecida a Quinta da Mafarra. Será um nome original, uma corruptela alusiva a um topónimo berbere ou possuirá outro significado? Na década de 80 e 90 do século XIX era conhecida como Quinta da Mafarra, nome que chegou até aos nossos dias.

3. Vide António Miguel Ascensão Nunes (José Varzeano), A Freguesia da Várzea (do concelho de Santarém)- Achegas para uma monografia, Junta de Freguesia da Várzea, Garrido Artes Gráficas, Alpiarça, 2005, pp. 341-342.

4. De Groot, que significa o Grande, é um apelido relativamente comum na antiga Flandres. Refere-se provavelmente a uma alcunha que se transformou num apelido. Os de Groot portugueses eram comerciantes que, a pouco e pouco, se foram casando com fidalgos, cavaleiros das ordens militares, mercês régias e detentores de cargos administrativos e burocráticos ou membros da alta burguesia lisboeta, nos séculos XVII, XVIII e XIX.

5. Vide Susana Varela Flôr, Aurum Reginae or Queen Gold- A Iconografia de D. Catarina de Bragança entre Portugal e Inglaterra de Seiscentos, Tese de Doutoramento em História, especialidade em Arte, Património e Restauro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2010.

6. Vide Miguel Montez Leal,"Pereira Cão (1841-1921), Percurso e Obra de um Pintor Setubalense, in Património Arquitectónico Civil de Setúbal e Azeitão, Lisboa, Portugal: LASA-Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2019, pp. 351-362.


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