Francisco Rodrigues Lobo (1574-1622), o poeta leiriense que morreu afogado em Santarém

O autor de Corte na Aldeia, um dos seus livros mais conhecidos, morreu afogado no Tejo em Santarém quando seguia de barco para Lisboa. Depois da sua morte a Inquisição perseguiu a família e o próprio Francisco Rodrigues Lobo foi acusado de criptojudaísmo. Hoje é uma das figuras mais homenageadas e lembradas na cidade de Leiria.
Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste:
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca primavera:
Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Eu não sei se serei quem de antes era.
Nos inícios de 1811 a soldadesca de Massena, em plena guerra Peninsular e durante a terceira invasão francesa entrava em Leiria, destruindo mais de metade da cidade, queimando, igreja e conventos e fazendo todo o tipo de atropelos e depredações, tal como nos conta Ricardo Charters d’ Azevedo. Queimaram-se assim os registos paroquiais da cidade (baptismos, casamentos e óbitos), e todos aqueles que sejam leirienses há muitas gerações ficaram amputados de poder conhecer a sua árvore genealógica, sobretudo aqueles que eram da cidade e não das freguesias rurais. Apenas de uma forma indirecta e por outras fontes se consegue ir descortinando a teia intrincada e emaranhada que constitui uma árvore genealógica, ou através dos registos notariais, que dão sempre um pouco mais de trabalho e que se custodiam nos diferentes arquivos distritais, delegações regionais do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
É o caso de Francisco Rodrigues Lobo, cristão-novo, natural de Leiria, e com três quartos de nação, exceptuando a sua avó materna, cristã-velha, de que desconhecemos o nome
Hoje em dia sabemos com segurança que o poeta nasceu no centro da cidade, em 1574 e morreu em 1622, afogado no Tejo, ao largo de Santarém, com quase cinquenta anos de idade, quando viajava numa barca acompanhado pelo Conde de Assentar e por outros cortesãos.
Francisco Rodrigues Lobo, era o filho mais velho de André Luís Lobo, escudeiro-fidalgo da Casa da Infanta Dona Isabel (filha do 4º Duque de Bragança, D. Jaime, viúva do Infante D. Duarte e mãe de D. Catarina de Bragança) e de Isabel Lopes. A sua família era muito abastada, pertencendo ao estrato da nobreza civil, isto é, à “nobreza de mérito” e não hereditária ou sanguínea.

Viviam no centro da cidade, muito perto da actual Praça baptizada com o seu nome, e possuíam muitas propriedades urbanas e rústicas nos arredores de Leiria, “nos campos do Lis e do Lena”. Francisco Rodrigues Lobo era o mais velho de três irmãos: Miguel Lobo e Paula Luís Lobo.
A sua família girava em torno da órbita dos Marqueses de Vila Real (os Meneses), família com Solar em Leiria, e, à época, uma das mais importantes famílias do Reino, e em torno dos Duques de Bragança.
Viviam e frequentavam o estrato mais alto da sociedade, considerando-se nobres e vivendo “à lei da nobreza”, embora que se saiba, não tinham escudo de armas próprio.
A família era originária do Alentejo, onde tinha muitos parentes, Lobo, também, assim como muitos outros na cidade de Leiria, os Carrilho, os Caçapo, os Bocarro, os Mesquita, os Roiz e Andrade, os Freitas Carrilho/Cardoso e tantos outros.
O próprio apelido usado pela família é em si também um pequeno mistério, mas como sabemos, os apelidos eram colocados ou herdados de variadíssimas formas até muito tardiamente. O mais provável é que viesse de um dos seus bisavós alentejanos, visto que tanto os avós paternos, como maternos (exceptuando o total desconhecimento do nome completo da sua avó cristã-velha, como vimos), não assinavam com este apelido. E muitos eram os parentes Lobo que Francisco possuía no Alentejo.
Rodrigues Lobo estudou na Universidade de Coimbra e recebeu ordens menores em 1602, diplomando-se em Leis na mesma Universidade. Durante um surto de peste refugiou-se no Mosteiro da Batalha onde prosseguiu os seus estudos.
Parece nunca ter vindo a exercer profissão própria, poderia ter advogado, mas tornou-se num dos mais notáveis prosadores e poetas dos finais do século XVI vivendo na órbita dos Bragança, seus protectores, e dos rendimentos fartos que a sua família auferia.
Em Coimbra escreveu Romanceiro (1596), então com 24 anos de idade. Escreveu variadíssimas obras de carácter pastoril de que destaco a trilogia Primavera (1601), O Pastor Peregrino (1608) e O Desenganado (1614). Escreveu Éclogas (1605), O Condestabre (1610), La Jornada del Rey D. Felipe III a Portugal (1623) e como prosador Corte na Aldeia (1619), além de Elegias de Devoção, deixando inéditas Cartas, Cartas dos Grandes do Mundo e Hospital de Cupido.
A maior parte da sua obra foi escrita ao longo de quase trinta anos, desde os tempos de Coimbra, em 1596, até 1622.
Dedicou-se a estudos históricos, à poesia e prosa, em obras de carácter pastoril, ou didácticas.
A sua obra mais famosa é sem dúvida Corte na Aldeia, livro constituído por dezasseis diálogos didácticos sobre os preceitos a seguir na vida de Corte. Dedicada ao irmão do Duque de Bragança, D. Duarte, Marquês de Frechilla e de Malagão, foi considerada pelo aragonês Baltasar Gracián, como “livro eterno”.
Após a sua morte foi caindo no esquecimento, apesar de se irem fazendo reedições das suas obras.
Aquele que morreu afogado nas águas do Tejo e foi sepultado numa modesta Igreja na Ribeira de Santarém, tendo o seu corpo sido trasladado anos mais tarde para o Convento de S. Francisco de Lisboa, que ruiu com o terramoto de 1 de Novembro de 1755.
Foi ridicularizado pelos vindouros dizendo-se que morreu afogado mas que deveria ter perecido pelas chamas, aludindo à perseguição que fora movida à sua família, após a sua morte, sendo acusados de criptojudaísmo.
D. Francisco de Portugal aquando da morte de Rodrigues Lobo escreve ao Bispo Dom Rodrigo da Cunha:
“Vosa senhoria sempre me faz merces eu as tenho por tão infalíveis como quem conhece o animo de V.S. e como quem lho não desmeresse com o seu animo por qua tudo são desastres francisco roiz lobo morreo afogado no Tejo que ate nas agoas há engratidoens na desgraça foi poeta, e, enfim, era entre nos soo q empremia mortes de foguoo”;
Também nos últimos tercetos de dois sonetos atribuídos a D. Tomás de Noronha (Alenquer ?; 1651), a propósito também da morte do Poeta de Leiria:
“Por São Pedro do Ceu que em um momento/A miserável alma lhe mandara/C´um piparote ao reino do tormento”; e Pastor Lereno, a morte injustamente/Te acometeo; mas dizem que queimado/Havias de morrer naturalmente”.
No século XIX Camilo Castelo Banco, romancista e investigador infatigável, dedicou-lhe alguma atenção, assim como o fizeram nos séculos XX e XXI, Afonso Lopes Vieira, Ricardo Jorge, Artur Lobo de Campos (parece que seu parente e descendente da mesma família), Maria Ema Tarracha Ferreira, Carlos Alberto Ferreira, Maria de Lourdes Belchior, Maria Lucília Gonçalves, Paulo Silva Pereira, José Adriano de Carvalho, Luís Miguel Nava, Selma Pousão-Smith, professora de literatura e a sua maior especialista enquanto biógrafa, e Carlos Ascenso André, que escreveu Fotobiografia Impossível Francisco Rodrigues Lobo 1574-1621.
Durante a sua vida “o mal de inveja” andou-lhe sempre colado à pele e desde que se estabelecera definitivamente o Tribunal do Santo Ofício, no reinado de D. João III, em 1536, apesar de Francisco Rodrigues Lobo pertencer à classe da nobreza civil e de se dar nas mais altas esferas da sociedade, as suspeitas de criptojudaísmo e os ciúmes do seu talento, para além de uns amores ainda não totalmente descortinados, com uma dama da família dos Marqueses de Vila Real, figuras tutelares em Leiria, foram-lhe movendo profundas inimizades e intrigas palacianas.
Após a sua morte os seus irmãos foram perseguidos pelo Tribunal da Inquisição.
Miguel Lobo foi preso em 1626 e Paula Luís Lobo, em 1633. Pertenciam ambos a um estrato urbano superior, embora pertencendo à nobreza civil, isto é, de mérito e não de sangue:
“Bem acomodados em casas novas de um sobrado, abastados mesmo se moderada e relativamente, os Lobo vivem à lei da nobreza, isto é, só andam a pé quando querem, porque têm cavalos seus na estrebaria; comportam-se com autoridade decorosa e não decomposta, convivem com nobres e não se se servem por si, antes têm criados que os servem”.
Em 1626 os Lobo possuíam um total de onze tipos de propriedades, prédio urbanos, rústicos, gado, olivais, vinhas e terras de semeadura, para além de mercês e comendas dadas pelo Duque de Bragança e de quantioso numerário, numa fortuna razoável, avaliada por Selma Pousão Smith, entre os três e quatro contos. Eram, como podemos constatar, proprietários particulares do microestado da nobreza de cargo e cortesãos.
Após a morte do poeta a família foi acusada de apostasia e judaísmo. Foram levantados processos contra Miguel Lobo, e Paula Luís, irmãos do poeta, contra a sua prima Joana Loba e o seu tio Henrique da Cunha (pai de Joana) e Manuel Lobo, primo-direito do poeta.
Apesar de lidos com toda a atenção os Arquivos da Inquisição de Lisboa (que a Diocese de Leiria integrava), incluindo os “Cadernos do Promotor”, “Livros de Denúncias”, “Correspondência expedida”, “Livro da Visitação de 1618-19” pelo Inquisidor Manuel Pereira, documentação relativa à época coincidente com a vida do Poeta e além dela, de finais do século XVI até 1640, não se encontra uma base documental segura para afirmar verdadeiramente que o poeta era criptojudeu ou apóstata.
Contudo parte da sua família chegada e primos foram perseguidos, alguns fugiram para Nantes, e os seus dois irmãos embora não supliciados, foram sujeitos a duros interrogatórios por parte do Tribunal do Santo Ofício.
Afinal as chamas da Inquisição não conseguiram destruir estes Lobo e o poeta foi devidamente homenageado numa Praça que ostenta o seu nome no centro de Leiria, num liceu nacional baptizado, também com o seu nome e ostentando o seu busto, com uma estátua da autoria de Martins Correia e com a escultura do Pastor Peregrino, assim como a Praça coroada pela sua estátua da autoria de Joaquim Correia.
Apesar de já não ser dado com profundidade no ensino secundário, como há uns anos atrás, a sua obra ficou, como sendo a de um dos maiores poetas e prosadores que nos ficou dos séculos XVI e XVII.
Nascido na cidade que teve prelo desde muito cedo, Rodrigues Lobo foi discípulo de Camões, um culto prosador e um refinado e lírico, poeta dos campos do Lis e do Lena. Mas qual é a Vida que afinal não deixa atrás de si mistérios?
Corte na Aldeia, fica-nos, também como uma obra-prima em diálogo, tal como se fazia na Antiguidade, sobre os preceitos da vida de Corte e iria influenciar o gosto das gerações cultistas portuguesas.
Bibliografia:
ANDRÉ, Francisco Rodrigues Lobo 1574-1621, Fotobiografia (Im)Possível, Imagens e Letras, Leiria, 2008.
Pousão-Smith, Selma, Rodrigues Lobo, os Vila Real e a Estratégia da Dissimulatio, Lisboa, 2008, dpois volumes,
Lobo, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia, Introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho, Editorial Presença, Lisboa, 1992.
NAVA, Luís Miguel, Poesia de Rodrigues Lobo, Editorial Comunicação, Lisboa, 1985.