Opinião | 29-07-2025 19:26

Camarada Estaline, o companheiro Elon M. e o carpinteiro José

Camarada Estaline, o companheiro Elon M. e o carpinteiro José

Vi o desaparecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS/CCCP) em direto na TV entre os 9 e os 11. Fiquei muito chateado com aquilo tudo. Não, ao contrário de grandes amigos, não fundei a JS aos 5 anos, ou antes de nascer.

Vivi uns tempos em Serpa e quotidianamente me assustava com o hábito de “toda a gente dar bom a dia a toda a gente”. Diz-se que em tempos remotos, também na minha aldeia natal, a Póvoa da Isenta, isso acontecia, mas entre bruxedos, o PREC e outras quezílias e o malfadado quebranto, é melhor ter cuidado. Cumprimentar sim, mas sempre de figa no bolso. Já em Santarém, fiz a experiência de cumprimentar toda a gente e desisti. Primeira não há figa que me valha. Depois os santarenos ou chamam o médico ou a PSP. Também nesta cidade sou migrante.

Deixamos de lado essas realidades sociológicas. Encontro-me a reler “Koba o Terrível” de Martin Amis, famosa biografia de Iossif (ou Yousef) Vissariónovitch Djugashvili. De facto, de georgiano percebo boi. Yousef grosso modo se traduz por José, antes de aderir ao marxismo, teve uma educação cristã, em escolas da Igreja, foi menino de coro e escreveu belos e pungentes poemas.

Ao contrário de Insustentável Leveza do Ser, não será através da obra de Martin Amis que o comum dos mortais, alguma vítima ou descendente dos crimes do camarada Estaline se reconcilia com a criança matreira que ele foi, sofrendo de porradas tranquilas, tanto do pai sapateiro e da mãe mulher a dias, conformada arriando no petiz. Talvez o petiz mais tarde também arreasse nos outros. Se todos os que sofrem maus-tratos na infância viessem a ser assassinos de massas, nunca a humanidade precisaria de dilúvio ou de pragas do Egito para se converter aos Céus, nem tão pouco de aquecimento global para desaparecer dos trópicos.

Deixemos Amis sossegado. Vi o desaparecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS/CCCP) em direto na TV entre os 9 e os 11. Fiquei muito chateado com aquilo tudo. Não, ao contrário de grandes amigos, não fundei a JS aos 5 anos, ou antes de nascer. Apenas tinha copiado os mapas e bandeiras dos países todos para um caderno em papel vegetal. Tinha passado boa parte da minha infância a copiar mapas e bandeiras. De repente, tudo mudou. Senti-me traído, não pela revolução, mas por um qualquer princípio cósmico que não respeita o trabalho dos outros. Ainda para mais o trabalho de uma criança, gostando tanto de mapas e bandeiras.

Já adolescente, e refeito do choque, depois de ver a A Casa da Rússia com o grande Sean Connery e um mural do PCP em Lisboa, vi dois documentários marcantes: o primeiro chama-se Loving Lenine. Spoiler alert. Termina com uma velhota analfabeta, que poderia ser minha parente, a dizer que teve uma posição de autoridade na freguesia porque a sua vaca deu muito leite. Diz-se que as primeiras palavras de Vladimir Ilitch Ulianov foram: “pão e liberdade”. Depois um erudito reflete que durante mil anos a Rússia foi governada por homens não por leis. Continua a ser?! Era o tempo de Boris Ieltsin. Tudo parecia possível.

O documentário, sobre Estaline, cujo título me foge da memória, era mais propriamente sobre o Gulag. Impressiona a história do tipo preso aos 14 anos por roubar um uísque. Enviado para o círculo polar ártico, sujeito a trabalhos forçados, a sevícias e torturas diversas, (como urinar ao relento em temperaturas negativas, sabendo que era sorte ou milagre não ficar castrado). Todos os dias construíam um caminho de ferro, todas as noites o inverno polar o destruía. Todos os dias o voltavam a construir. Estaline morreu, e o camarada condenado chorou. Chorou de piedade, sentido a falta do líder da pátria. A pátria de Lenine, como consta no bonito hino da Federação Russa.

Espero sinceramente que os tipos (ou as tipas) que futuramente forem castrados por mandarem um piropo ou apalparem alguém na noite obscena, não chorem lágrimas de sangue pelo “grande líder”. Seja o/a grande líder woke, talibã ou neofascista. Espero poder lembrar sempre, com a gentileza de quem diz bom dia a toda a gente, que “as/os grandes líderes” começaram por ser crianças meigas, mal-comportadas, queridas, birrentas, inconvenientes e mázinhas. Tal qual o catraio que disse a Trump: “— Tu não é o Presidente!”. Fosse meu filho levava tau tau, ao de leve no rabo — não é com um cinto seus fascistas! —, e/ou um puxão de orelhas, mas essencialmente um sermão. Porque há coisas que até podem ser conceptualmente verdade, mas não se dizem por boa educação. Tal qual a divisa de D. João II: “pola lei e pola grei”.

De qualquer forma, é sempre bonito quando um pai que não soube educar o companheiro Elon — “sem entranhas de mãe” diria José Relvas — vir em defesa do filho transtornado. Esse filho é um ás em despedir. Um prodígio a pensar que algumas pessoas deveriam trabalhar 120 horas sem salário. Um mago dos monopólios. Veja-se como a Paypal ainda controla boa parte das transações económicas e dos dados bancários do mundo todo. E ao contrário das gentes de Serpa, não, nunca o fez por altruísmo.

Diriam amigos meus que o Gulag para esta gente era mais digno, do que enviar a conta da bala para a família. No entanto, a base do meu humanismo continua a ser um batismo católico. A todos, quer ao camarada Estaline, ao companheiro Elon, ao presidente Trump, e aos pais de ambos, neste ou noutro mundo, mesmo à gentil criancinha, com as devidas proporções, não faria nada mal um estágio na oficina do carpinteiro José, dito pai de Jesus de Nazaré.

Não por se tratar de questões de fé. Trata-se de ensinar aos meninos(as) birrentos(as) os valores do trabalho e da boa educação. Talvez assim parassem de brincar no “recreio da política”. Tal qual eu e o Arménio, aos 7 ou 8 anos, a lutar na areia da escola primária da Póvoa da Isenta por causa das meninas. Antes de sermos migrantes.

Na imagem: São José com menino, escultura dita indoportuguesa, século XVIII; “Lenine” e “Karl Marx”, caricaturas em cerâmica de Constantino, séc. XXI. Fotografia de Miguel Raimundo.

Referências:

AMIS, Martin, (2003), Koba O Terrível, trad. de Telma Costa. Lisboa: Teorema, col. “outras estórias”.

KUNDERA, Milan (1999), A insustentável leveza do ser, trad. Joana Varela. 21a ed. Lisboa: D. Quixote.

NORAS, José Raimundo, Com um arquiteto na bagem - diários de viagem de Serpa a Ponte de Lima [em edição].

Loving Lenine, (1999), realizado por Angus MacQueen, produção: Reino Unido, [ref.ª em linha em https://www.imdb.com/title/tt2586976/

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