Opinião | 14-08-2025 07:00

É muito fácil enlouquecer quando não se viaja

É muito fácil enlouquecer quando não se viaja

“O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. Uma crónica sobre um livro de Luísa Dacosta e as cartas particulares a Marcello Caetano.

O que deu origem a esta crónica foi o gesto de, ao chegar a casa, quase às 11 da noite, ir à estante e tirar um livro para cima de uma mesa para no outro dia não me esquecer de o levar dentro da mala para o escritório e enviar no correio a um amigo que fez o favor de mo emprestar. Não é um livro qualquer: é um livro de Luísa Dacosta (1927-2015) com dedicatória, que se intitula Corpo Recusado, cuja leitura nunca teria procurado se o meu amigo não me tivesse contado que o livro é autobiográfico e conta a história de um amor traído. O personagem principal era uma figura importante da crítica literária portuguesa, que faz parte do meu imaginário, e com quem aprendi a desvendar alguns livros. Sabê-lo ali retratado na figura do amante que não foi capaz de saltar a cerca, fez-me saber, desde há cerca de um ano em que li o livro, em que lugar exacto da estante ele repousava à espera de ser devolvido.
Não por acaso hoje foi dia de cumprir a promessa de devolver o livro; passei uma boa parte da tarde à procura de um livro de Joaquim Veríssimo Serrão, que me lembro de ler e assinalar como faço aos livros de que gosto e depois guardo religiosamente para ir relendo. E um livro fácil de substituir na estante, mas o que procuro tem as marcas de uma primeira e segunda leitura que eu não gostava de perder. Por isso procuro-o, sabendo que um dia vou achá-lo, embora nessa altura certamente já tenha comprado um novo volume.
Acabei de reler os dois volumes das “Cartas Particulares a Marcello Caetano” com prefácio e organização de José Freire Antunes. A ideia era transcrever algumas das cartas para provar à sociedade que a comemoração do centenário da data de nascimento de Joaquim Veríssimo Serrão merecia ter figuras do Estado, e que a sua amizade com Marcello Caetano não foi caso único, antes e depois do 25 de Abril, havendo até o caso das cartas do actual presidente da República, que bem merecem uma leitura embora à distância de muito mais de meio século. Com a mão na massa cheguei à conclusão que mostrar estas cartas exige-me um trabalho que não me apetece fazer, e escrever o que me vai na alma sobre o assunto começa a parecer-me gastar cera com defuntos. No entanto valeu a pena a releitura. Os dois volumes estão ao lado da biografia de Pacheco Pereira sobre Álvaro Cunhal, também em dois grossos volumes, estes com menos horas de leitura do que aquelas que eu acho que merecem. Heráclito deixou escrito que “os que procuram ouro cavam muita terra e acham pouco”. É assim também com a leitura: quanto mais queremos saber sobre a vida de algumas figuras públicas mais nos escapa o que eles viveram na realidade.
Antes de começar a escrever a crónica e de voltar a folhear Corpo Recusado, em jeito de despedida do livro que me proporcionou uma leitura quase mística, sem arriscar um único sinal de leitura porque não se podem riscar os livros que os amigos nos emprestam, descobri uma folha com uma citação de um livro de Lawrence Durrell: “O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção”. O sentido da frase tem tudo a ver com o romance da Luísa Dacosta, mas agora também serve para deixar aqui nota da certeza que se sente de que por mais que nos esforcemos nunca conseguimos escrever na perfeição a carta adiada, a crónica, o poema ou o romance que diariamente nos consome os neurónios. JAE.

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