As cheias do Tejo de 1979 e as recordações que ficaram no Cartaxo

Na linha do Norte que percorre as margens do Tejo até Lisboa, um comboio, composto por três carruagens, recolhera os habitantes de Porto de Muge, Valada e Reguengo. Mais de cem pessoas iam a bordo, assim como algum gado de pequeno porte. O maquinista, o Sr. Blazer, natural de Vale da Pedra,ao avançar pela linha férrea deparou-se com um oceano em crescendo. O comboio seguia a um ritmo lento, Renato Campos, nas traseiras, ia verificando se o peso do comboio ia aguentando o peso das águas em crescendo e que chegavam já à altura de um palmo. As pessoas abraçavam-se e começavam a rezar. Poderiam não sobreviver.
Dentro de cerca de um mês relembram-se as inundações devastadoras da bela cidade de Valência na costa mediterrânica espanhola. Choveu copiosamente, houve mortos e feridos, infraestruturas ficaram destruídas, cidadãos, casas e automóveis foram arrastados pelas águas e pela lama. Parece que o governo regional decidiu não accionar os pedidos de resposta imediata e de pedido de ajuda à capital de Espanha. Na imprensa, televisão e redes sociais surgiram as críticas, tentaram apurar-se responsabilidades e iniciou-se uma espécie de “guerra civil” entre o centro e as autonomias do país vizinho.
Todo este panorama desolador fez-me recuar à minha infância, quando o Tejo, que Almeida Garrett apelidava de “o nosso Nilo”, galgou as suas margens a 11 e 12 de Fevereiro, destruiu aldeias e vilas ribeirinhas, afectou culturas agrícolas, provocou a morte de gado.
Os helicópteros sobrevoaram os céus do Concelho do Cartaxo, recolheram-se os seus habitantes que foram instalados provisoriamente em pavilhões da então Vila, como o do Inatel e o do antigo jardim de infância. A população solidarizou-se, fez-se a recolha de víveres e roupas para estas populações que tudo perderam. A notícia estava presente em todo o lado, na televisão e imprensa. O presidente da República, General Ramalho Eanes deslocou-se ao Cartaxo constrangido e tudo fez por ajudar este concelho da beira Tejo. Duas mil pessoas foram evacuadas na que foi a maior cheia do século XX. Do concelho do Cartaxo, foram 600 os que foram resgatados.
À época o Cartaxo era liderado por um jovem presidente da Câmara, o primeiro a ser eleito em democracia, o Dr. Renato Vieira Campos. É bom que a sua atitude e decisões fiquem para memória futura. Há um episódio que começa a ficar esquecido, sobretudo para as populações mais jovens, pois tudo isto aconteceu há 45 anos. Na linha do Norte que percorre as margens do Tejo até Lisboa, um comboio, composto por três carruagens, recolhera os habitantes de Porto de Muge, Valada e Reguengo. Mais de cem pessoas iam a bordo, assim como algum gado de pequeno porte. O maquinista, o Sr. Blazer, natural de Vale da Pedra,ao avançar pela linha férrea deparou-se com um oceano em crescendo. O comboio seguia a um ritmo lento, Renato Campos, nas traseiras, ia verificando se o peso do comboio ia aguentando o peso das águas em crescendo e que chegavam já à altura de um palmo. As pessoas abraçavam-se e começavam a rezar. Poderiam não sobreviver. O maquinista perguntou ao então Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo, se se avançava ou não. Ao fim de três, quatro kms, fez-se uma paragem. A meio do percurso não se viam os carris e para trás já estes tinham desaparecido. Numa questão de segundos respondeu que sim: “sim avançamos”. Todos poderiam ter morrido naquele dia. O comboio avançou à velocidade possível, tentando acelerar, enquanto o caudal do rio ia subindo. À justa e milagrosamente as composições conseguiram romper um rio em força crescente. Salvaram-se por um triz e imediatamente depois este imenso oceano cobriu toda a linha férrea. Puderam por fim chegar ao terreno mais elevado da estação do Setil.
O heroísmo é fruto do acaso, é involuntário, “é o homem e a sua circunstância”, como afirmava Ortega y Gassett, ou é um pensamento racional e estruturado e quase uma iluminação? Felizmente tudo terminou bem e estes nossos concidadãos puderam ficar a salvo e serem cuidados e ajudados.
Passados todos estes anos o rio Tejo continua a ser uma preocupação, uns anos seco e cada vez mais repleto de espécies invasoras que lhe retiram a luz essencial para a fauna e flora submarina, outras vezes com enchentes quando se abrem as represas das barragens espanholas. Nascendo nos arredores de Toledo e desaguando no Mar da Palha, o rio Tejo é o cartão turístico desta antiga província, mas há tanto ainda por fazer.
Rente ao rio vão ficando reduzidas as populações onde as terras tão pouco têm para oferecer à luz dos critérios contemporâneos, os edifícios dos nossos antepassados vão ruindo, os acordos com Espanha vão periclitando, a ecologia e o ambiente vão ficando para as calendas gregas, pouco se precavê, contamos sempre o improviso ou com milagres, desperdiçando fundos comunitários e gerindo toda esta questão essencial para o nosso País de uma forma amadora. Muito se resolve em cima do joelho e sem planeamento.
É mais do que justo homenagear personalidades, como Renato Vieira Campos, pela sua coragem, humanismo e solidariedade, assim como o Sr. Blazer, o maquinista que teve o sangue-frio de avançar. Forças armadas, em helicópteros e embarcações, bombeiros e muitos anónimos ajudaram em todo este terrível panorama e muitos terão histórias por contar. Seria muito bom que as passassem da oralidade para a escrita. Falta cumprir este desígnio essencial para memória futura. E aí terão de ser os jornalistas ou os historiadores a fazerem este papel de recolha de testemunhos orais.