Deem-me vagar
O vagar ensina que nada essencial se faz depressa, é preciso tempo, o tempo que só o vagar conhece; como disse um carpinteiro de Évora, quando lhe perguntaram como faria a enorme peça pousada no banco: “deem-me vagar”. O montado cresce em décadas, o solo regenera-se em ciclos longos, a água infiltra-se silenciosamente, sem espetáculo. Esta lentidão ecológica é também uma lentidão antropológica: a vida aprende a maturar, não a precipitar.
O vagar alentejano ganha espessura quando lido à luz do “lento” que Tolentino Mendonça descreve no seu último livro (Para os caminhantes tudo é caminho, ed. Quetzal, novembro 2025). O lento é apenas a desaceleração voluntária do quotidiano; o vagar é a matéria crua da experiência humana quando somos obrigados a habitar o tempo que não cedemos, mas que nos molda. O lento das esperas, das dúvidas, da fadiga. O vagar que atravessa o Alentejo, não como obstáculo, mas como pedagogia. O vagar ensina que nada essencial se faz depressa, é preciso tempo, o tempo que só o vagar conhece; como disse um carpinteiro de Évora, quando lhe perguntaram como faria a enorme peça pousada no banco: “deem-me vagar”. O montado cresce em décadas, o solo regenera-se em ciclos longos, a água infiltra-se silenciosamente, sem espetáculo. Esta lentidão ecológica é também uma lentidão antropológica: a vida aprende a maturar, não a precipitar. A modernidade globalizada idolatra o rápido, o imediato, o eficiente, o produtivo, o clique. Tolentino lembra, porém, que até o rápido só é plenamente vivido quando é agradecido, reconhecido como graça breve. O Alentejo acrescenta a este quadro a sabedoria da contenção: a pressa nunca fez parte da lógica do território porque o clima, os recursos e as práticas tradicionais não a permitiam. Aqui, o vagar é condição de sobrevivência, mas também de lucidez. Como assinala Hartmut Rosa (“Resonance: A Sociology of Our Relationship to the World”, 2019), só na desaceleração é possível ressonância, o encontro sensível com o mundo que nos permite compreendê-lo e transformá-lo. É verdade, o vagar transforma, este saber é o melhor que Évora_27 pode dar ao mundo.
O lento tolentiniano aproxima-se do vagar alentejano. É o lento das perguntas sem resposta, dos processos cuja saída não está clara, das dores que pedem tempo para se tornarem discernimento. Mas, é só no Alentejo que nas comunidades rurais, o vagar sempre foi vivido coletivamente, partilhado com cumplicidade do vizinho e do lugar. O vagar funde as pessoas com o lugar. Do território emana, igualmente, esta alma do andando, pensando, fazendo, vivendo…Cada inverno duro, cada seca prolongada, cada imprevisibilidade do clima era enfrentada com redes de apoio, conversas longas, no portal da casa, na fonte ou “lume de chão” (lareira), um tipo de solidariedade que só o vagar conhece. O vagar não paralisa; afina. Torna a ação mais atenta, mais medida, mais consciente e mais viva e vivida. O vagar alentejano, assim compreendido, ultrapassa o estereótipo romântico da vida pacata. É uma tecnologia social do tempo. É a capacidade de fazer do lento, por vezes pesado, duro, incómodo, uma plataforma para viver melhor. O vagar é fértil porque abre espaço à observação fina do território, à leitura dos sinais da terra e do tempo, ao reconhecimento das vulnerabilidades e das virtudes. Autores como Tim Ingold e James Scott mostraram que esta atenção demorada é a base do conhecimento ecológico tradicional, hoje crítico para enfrentar os enormes desafios que se nos colocam. Integrar o vagar na vida contemporânea não é um convite ao imobilismo; é um convite à regeneração. Os territórios que sabem habitar o vagar, como o Alentejo, possuem uma vantagem estratégica num mundo em colapso: conseguem decidir com mais clareza, agir com menos desperdício, adaptar-se com maior inteligência ao ritmo real dos ciclos naturais. O lento torna-se, paradoxalmente, motor de futuro. É o tempo que permite reparar vínculos, reconstruir economias locais e repensar modos de vida. É, como diria Carlo Petrini, a base de uma “ecologia do quotidiano” capaz de gerar bem-estar, comunidade e sentido. No fim, a pressa faz-nos desejar; o vagar faz-nos compreender. A pressa precipita; o vagar transforma. E, o Alentejo, com o seu vagar ancestral, mostra que a vida plena não está na velocidade, mas na capacidade de reconhecer quando avançar… e quando, simplesmente permanecer.
Vagar, mesmo que o tempo e a distância digam não.
Parede, 16 novembro 2025
Carlos Cupeto
Texto originalmente publicado no jornal “Publico”


