A AI ainda não apanha azeitona
Terminada a minha apanha da azeitona, decidi visitar todos os lagares de azeite do concelho de Santarém. Restam nove. Apenas nove. Cinco anos atrás eram quase o dobro. Os tempos mudam depressa e a AI (inteligência artificial) ainda não apanha azeitona.
Terminada a minha apanha da azeitona, decidi visitar todos os lagares de azeite do concelho de Santarém. Restam nove. Apenas nove. Cinco anos atrás eram quase o dobro. Os tempos mudam depressa e a AI (inteligência artificial) ainda não apanha azeitona.
Esta visita estava prometida há muito: queria fotografar o que sobrevive, os lugares e os gestos que caminham para a extinção. Mal eu sabia que essa extinção já vai avançada. Parti num dia que amanheceu chuvoso, pesado, mas que se abriu, ao fim da tarde, num sol de outono quente e inesperado, desses que parecem o último suspiro da estação.
O primeiro lagar surgiu no final de uma subida íngreme, depois de atravessar uma névoa branca e espessa, tão cinematográfica que parecia saída de um velho filme europeu. O local era um labirinto de edifícios industriais; nem antigos, nem modernos; apenas marcados pelo tempo, pela chuva, pela fadiga das décadas. Do planalto, revelava-se uma vista soberba sobre o vale, que só se deixou ver quando o sol rompeu a bruma e iluminou o cenário com uma luz dourada, etérea quase.
Quem já viu um lagar pensa que já viu todos. Mas este era diferente. Ali, num só plano, consegui observar todas as fases do processo; da azeitona ao azeite; como se fosse uma coreografia mecânica. Cheiros, sons, movimentos.. tudo amplificado. Fiquei rendido. Prometi voltar no próximo ano, ficar lá dois dias inteiros, do nascer ao pôr-do-sol, noite dentro talvez.
Podia contar a história de cada lagar. Os mais novos, modernos, brilhantes como clínicas. Os antigos, com alma nos metais e memórias nas paredes. Os familiares, ainda sobreviventes. Montanhas de bagaço ao lado, sim, esse bagaço, ainda existe. Os industriais, com cubas tão grandes que mais pareciam silos de cereal. Fotografei tudo. Ou tentei.
Mas a reportagem que eu ia fazer mudou de rumo sem pedir licença. A certa altura percebi que os lagares eram cenário; a verdadeira história estava nas pessoas. A AI ainda não apanha azeitona.
As pessoas, sim. Pessoas que sobem a oliveiras, que manejam vibradores e redes, que conduzem tratores carregados de fruto. E venham a que lagar que vieram; moderno, velho, pequeno ou grande, o ritual repete-se: filas de entrega com tratores, carrinhas 4x4.
E estas filas são mais do que um processo, são uma imagem de um país. Pode-se medir o pulso de um povo todo, numa fila de lagar de azeite. Homens e mulheres com rostos sulcados pelo sol, vontades que resistem apesar do cansaço. Gente que diz “isto está mau, este é o último ano”, mas que volta sempre, até que o corpo se recuse.
E depois, há o novo, o inesperado o quase absurdo: ao lado de um trator de museu pode surgir um SUV elétrico, até um Tesla. Às vezes é de um “doutor de Lisboa” que decidiu brincar à ruralidade; outras vezes é de um imigrante que comprou a velha Quinta da Torre e agora produz o seu azeite com orgulho. Cada um tem uma história deliciosa para contar. E eu ouvi-as. E perdi-me nelas, até que a fotografia ficou pequena para tanta vida.
E não são só os produtores que têm histórias; os donos dos lagares também as carregam às costas. Todos, sem exceção, partilham a mesma estrutura familiar: negócio de dois ou três meses por ano, insuficientes para sustentar uma casa. Trabalhadores sazonais, difíceis de contratar e mais difíceis ainda de manter, porque o saber tradicional está a desaparecer. Três dos lagares que visitei ainda usam o método ancestral de prensa, mas os proprietários confessaram-me que não aguentam muitos mais anos. Ou modernizam-se… ou fecham.
Há uma beleza estranha num lagar.Algo de telúrico, primitivo, meio mágico. Uma mistura de barulho metálico, vapor, cheiro a azeite quente e ecos de vidas inteiras. Mas essa beleza está a desaparecer. Não sobreviverão muitos. Talvez um ou dois em todo o concelho.
E os que ficarem serão grandes, industriais, asséticos, sem alma, sem histórias, sem nevoeiro branco de madrugada, sem vista sobre o vale.
Talvez, nessa altura, a AI já apanhe azeitonas.Mas duvido que saiba escolhê-las. Ou senti-las. Ou conversar sobre elas numa fila de lagar ao final da tarde.


