Opinião | 24-12-2025 21:00

Recusar a salvação e sonhar com roxos lírios ao léu, a olhar os montes de Vénus

Emails do outro mundo

Florescente Serafim das Neves

Florescente Serafim das Neves
O botânico Jorge Paiva, que gastou muito latim a tentar meter na cabeça de jovens estudantes a importância da biodiversidade, com um sucesso reduzido, principalmente entre os antigos ouvintes que chegaram a governantes e administradores de empresas, fez agora, aos 92 anos, uma incursão na obra de Luís de Camões, para identificar todas as plantas que o poeta menciona nos seus versos.
E ainda bem que o fez, porque me deu uma outra perspectiva dos Lusíadas, obra que tanto me atormentou no Secundário. De repente dei por mim a tirar o pó ao calhamaço que repousava há décadas na estante e a descobrir que há por lá mais do que as armas e os barões assinalados do canto I, cuja primeira estrofe sei de cor, por nunca ter passado dali.
Numa entrevista ao Público ele fala, entre outras coisas, de um cendal, véu mais ou menos transparente, que é mencionado no canto II, e que a minha professora de português poderia ter usado com sucesso, para nos incentivar a aplicarmo-nos a fundo, digamos assim, na atenta leitura do longo poema.
Nessa parte dos Lusíadas, Camões conta…ou melhor, canta, que Vénus, para atrair um deus, está desnuda e coberta com o tal véu que, por ser curto, lhe deixava os roxos lírios à mostra. E se houver quem pense que o poeta fala de flores, é porque está a precisar que lhe adubem a imaginação.
Escreve ele: “Com um delegado cendal partes cobre/ de quem vergonha é natural reparo./ Porém, nem tudo esconde, nem é descobre,/ o véu dos roxos lírios pouco avaro./ Mas para que o desejo acenda e dobre,/ lhe põe diante aquele objecto raro./ Já se sentem no céu, por toda a parte/ ciúmes em Vulcano, amor em Marte.”
No Jardim Horto de Camões, em Constância, onde há 52 plantas mencionadas por Camões na sua poesia, até pode haver lírios, mas lírios roxos e véus transparentes, isso é mais para quem olha a lua, em vez do telemóvel, quando passeia na rua.
Nesta época tenho sido abordado por gente simpática que me quer salvar. A mim, ao país e ao Mundo. As promessas da salvação andam por aí, ao som de músicas polvilhadas de sininhos, quer em forma de políticos a mostrar a dentuça, modelos a mostrar-se em roupa interior mais transparente que o cendal de Vénus, ou a sugerir perfumes místicos, junto a árvores de Natal iguais às dos bancos, seguradoras ou super-mercados.
No meio desta mistura de presépios, sutiãs e cuecas fio dental, Pais Natais brejeiros, fragrâncias de queijo da serra e de madeiras eróticas, e árvores a imitar pinheiros feitas na China, pus-me a escrever postais de Natal em papel, pintados com boca ou pé, que me chegam anualmente à caixa do correio, enviados pela associação de Artistas e Pintores com a Boca e o Pé, desde os tempos em que era criança e vinham no nome da minha mãe.
Mandei uma dúzia deles e só não mandei mais, porque não tinha a morada de algumas pessoas, e já não há listas telefónicas para as descobrir, porque agora é tudo segredo de Estado. Tudo, menos os lírios roxos de certas senhoras, que se mostram aos milhares nos sites da especialidade, com ou sem gingombéis!!!
Um bacalhau dos antigos
Manuel Serra d’Aire

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