Opinião | 22-04-2022 11:39

A herança de Salazar

Santana-Maia Leonardo

Foi certamente nos jogos disputados pela equipa de Pablo Escobar que se inspirou a liga portuguesa. Mas não pode ser este o modelo defendido por um verdadeiro adepto de futebol. A liga portuguesa mantém a estrutura feudal e classista herdada do tempo do fascismo.

Uma verdadeira competição pressupõe que cada competidor dê o máximo de si pela vitória (independentemente de poder vencê-la ou não), que os competidores sejam tratados como iguais (independentemente do tamanho de cada um) e que os juízes (lato sensu) sejam imparciais e independentes.

E em Portugal, sejamos claros, faltam todos estes requisitos. A cultura desportiva nunca foi o nosso forte, nem nunca foi incentivada. Como é típico dos batoteiros, valorizamos mais o ganhar nem que seja com um golo com a mão e em fora de jogo, do que a competição e, consequentemente, o mérito. E sem cultura desportiva, tornamo-nos, como é óbvio, permeáveis e condescendentes com todo o tipo de batota e de corrupção.

Pablo Escobar, um dos maiores narcotraficantes, gostava muito de futebol e de ganhar, tal como a maioria dos portugueses. Segundo conta o seu filho, nunca perdeu um único jogo em toda a sua vida, o que tornava a sua equipa no glorioso dos Gloriosos. Importa, no entanto, chamar a atenção para algumas particularidades, ainda que, para a maioria dos portugueses, sejam absolutamente irrelevantes, porque o que interessa, mesmo, é ganhar seja de que forma for. Os jogos em que participava a sua equipa eram sempre arbitrados por Pablo Escobar, que tinha ainda a faculdade de, no decorrer do jogo, poder integrar na sua equipa os melhores jogadores da equipa adversária. Além disso, os jogos só terminavam quando a sua equipa estivesse a ganhar.

Foi certamente nos jogos disputados pela equipa de Pablo Escobar que se inspirou a liga portuguesa. Mas não pode ser este o modelo defendido por um verdadeiro adepto de futebol. A liga portuguesa mantém a estrutura feudal e classista herdada do tempo do fascismo. Com efeito, uma coisa é a diferenciação resultante do sucesso, através de meios próprios e num livre mercado regulado, que é o que acontece em todas as ligas da União Europeia; outra coisa é a diferenciação assente na discriminação existente nas sociedades fechadas e hierarquizadas em castas que impedem a ascensão social das classes de nível inferior. E, na liga portuguesa, como toda a gente sabe, o sucesso das classes mais baixas depende exclusivamente das relações de vassalagem com os senhores feudais que, inclusive, mantêm o direito de pernada sobre os clubes vassalos.

Face ao modelo feudal e classista da liga portuguesa, o modelo defendido pelos adeptos de futebol tem de ser da mesma natureza do modelo defendido pelas forças democráticas do 25 de Abril. Ou seja, o modelo europeu, mais precisamente o modelo inglês, quer quanto à igualdade de tratamento dos clubes, designadamente na comunicação social e no comentário desportivo; quer quanto à centralização dos direitos televisivos e distribuição equitativa das receitas; quer quanto à limitação da inscrição de jogadores; quer quanto às garantias de independência da justiça desportiva e do conselho de arbitragem.

O 25 de Abril ainda não chegou ao futebol português. Mas vai ter de chegar até porque não há democracia liberal sem uma verdadeira e sadia cultura desportiva.

Santana-Maia Leonardo

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