Opinião | 21-10-2022 06:59

A Minha Vitória

Santana-Maia Leonardo

Passei toda a noite com a Vitória a falar da nossa vida, dos tempos em que éramos novos e parecia que a vida nunca mais acabava. Mas a nossa hora, por mais que se adie, acaba sempre por chegar. A veterinária chegou poucos minutos antes das 16H. Tinha chegado fatalmente a hora da despedida. Abracei-a com toda a força, enquanto a veterinária lhe entregava o bilhete para a sua última viagem.

A Vitória nasceu no dia 8 de Agosto de 2008. Provavelmente por ser alentejano, sempre tive uma queda pelos rafeiros alentejanos. E, quando são cachorros, são cães com quem apetece brincar, porque são vivaços, brincalhões e robustos, o que significa que não se corre o risco de se partirem.

No entanto, a Vitória, felizmente, não teve como destino a minha casa. Era o que mais faltava! Eu já tinha cães que chegassem. Até já lhes tinha perdido a conta. Já nem me lembro se eram 7, 8 ou 9. E para quem foi educado para não querer cães em casa, qualquer dia ainda era eu que era posto na rua da minha casa por tanto cão. É claro que os cães não são como as pessoas, mas, por este andar, qualquer dia nem num cão a gente pode confiar. Aliás, não me admirava nada, com tanto socialista a passar-lhes a mão pelo pêlo, que um dia destes ainda se lembrassem de convocar uma assembleia de pata no ar para correr comigo de casa.

Mas da Vitória, pelo menos, estava eu livre. Foi oferecida ao meu filho para guardar o monte pelo que não havia qualquer hipótese de aterrar na minha casa.

À medida que foi crescendo, a Vitória transformou-se numa cadela imponente, bonita e muito meiga. Só tinha um defeito: gostava mais das galinhas e dos borregos do que eles gostavam dela. Essa foi a justificação que me deram para a terem presa à corrente numa casota pequena ao pé do monte. Não a podiam soltar, caso contrário a criação levava sumiço…

Aquilo mexeu comigo, porque sou um amante incondicional da liberdade e não me consigo imaginar sequer enfiado numa gaiola, seja em Caxias, no Aljube ou no Tarrafal. Na noite seguinte, quando cheguei a casa, estava a chover torrencialmente. Quando me ia deitar, veio-me à memória a imagem da Vitória presa à corrente naquela casota. Levantei-me, meti-me no carro, fui ao monte, carreguei a Vitória e fiquei atascado no meio do caminho. No entanto, lá consegui desenvencilhar-me com a ajuda de um tractor. Mas, nessa noite, a Vitória já dormiu, em liberdade, na minha casa. No fundo, é essa a vantagem de ter muito cães: eram tantos que já ninguém dava pelo acrescento.

Todavia, a Vitória não veio para a minha casa sem mais nem menos. Tive, nessa noite, uma conversa a sério com ela e ela teve de assumir um compromisso comigo. Como eu lhe disse nessa noite, eu tinha tantos cães na minha casa que já não mandava nada e qualquer dia ainda corria o risco de ser posto na rua pelo que, se ela queria vir comigo, tinha de me prometer que metia ordem na casa e que não deixava que os outros cães me faltassem ao respeito.

E a verdade é que nunca tive razões de queixa da Vitória. Toda a gente gostava dela, mas, quando algum cão se armava em esperto, bastava ela abrir os olhos que eles ficavam logo com os cabelos em pé. E os meus netos adoravam-na. Ela consentia que eles lhe fizessem todas as tropelias com uma paciência verdadeiramente alentejana.

Cada vez que eu chegava corria desenfreada, de alegria, de um lado para outro até eu estacionar o carro e depois atravessava-se à minha frente para eu lhe ir sempre a fazer festas até casa. Gostava mesmo daquela cadela que ainda por cima tinha o nome do clube da minha infância.

No verão de 2018, quando fez dez anos, as corridas que fazia, quando eu chegava, passaram a ser substituídas por um andar cambaleante, igual ao meu quando fiz 60 anos. Quando era novo também me fartava de correr, mas, com o passar dos anos, a suspensão e as dobradiças começam a dar sinal de desgaste e com a Vitória passava-se o mesmo. Como eu a compreendia! Mas nunca deixou de vir ter comigo e de se atravessar à minha frente para eu lhe estar sempre a fazer festas.

No dia 25 de Agosto de 2019, quando me preparava para ir gozar a minha semana de férias ao Algarve, ao despedir-me da Vitória, tive um estranho pressentimento de que poderia ser aquela a última vez que a via. Mas afastei esta ideia, porque sabia que ela nunca iria partir sem se despedir de mim.

Na 4.ª Feira, dia 28 de Agosto, a minha mãe ligou-me a dizer que a Vitória tinha um grande inchaço na pata direita, dando a sensação de ter sido mordida por um bicho. A veterinária receitou-lhe uns anti-inflamatórios e, como o inchaço se mantinha, na 6.ª Feira, dia 30 de Agosto, levaram-na para lhe tirar uma radiografia à pata. Um cancro ósseo extremamente doloroso e agressivo tinha-lhe corroído os ossos da pata direita, estando em risco de se fracturar, e já se tinha expandido para os ossos do tronco. A cadela tinha de ser imediatamente abatida. Mas não é possível esperar por 2.ª Feira?… Face ao meu pedido, a veterinária lá receitou umas bombas atómicas para tornar a dor suportável e ficou marcada para 2.ª Feira o dia da grande viagem.

Quando cheguei a Ponte de Sor, a Vitória, surpreendentemente, fez um esforço enorme e lá se conseguiu levantar para cumprir o mesmo ritual de sempre. A minha chegada tinha-lhe dado um acrescento de alma que fez com que eu, na 2.ª feira, resolvesse adiar mais uma vez a viagem. Mas, na 5.ª Feira, percebi que já era desumano prolongar o sofrimento da Vitória, por mais tempo, e tive de marcar para o dia 6 de Setembro, às 16H, o dia da partida.

Passei toda a noite com a Vitória a falar da nossa vida, dos tempos em que éramos novos e parecia que a vida nunca mais acabava. Mas a nossa hora, por mais que se adie, acaba sempre por chegar. A veterinária chegou poucos minutos antes das 16H. Tinha chegado fatalmente a hora da despedida. Abracei-a com toda a força, enquanto a veterinária lhe entregava o bilhete para a sua última viagem.

Santana-Maia Leonardo

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