Opinião | 16-08-2022 10:25

“CATAR” aberta ao Sr. Presidente da República Portuguesa

P.N.Pimenta Braz

Morreram 6 750 pessoas em acidentes de trabalho nas obras do Mundial 2022. Eu já decidi. Não vou assistir na TV a qualquer jogo desse ignóbil mundial, mesmo que a nossa selecção atinja a final. Perante Deus e a minha consciência, não posso vender a minha alma ao diabo. Sim, sr. Presidente, ao diabo. E o diabo serão lucros pornográficos e milhões de espectadores, ambos serenamente sentados sobre milhares de cadáveres humanos.

Permita dirigir-me deste modo a V.Exa, mas o assunto justifica-o. Uma investigação do prestigiado “The Guardian” com base em dados fornecidos por várias embaixadas em Doha, anuncia que terão falecido 6 750 trabalhadores nos estaleiros de construção das infraestruturas para o tão ansiado Mundial de Futebol do Catar. Por outras palavras, morreram 6 750 pessoas em acidentes de trabalho nas obras do Mundial 2022. Insisto nesta descodificação, para que se perceba que o vocábulo “trabalhadores” é, afinal, um sinónimo de pessoas de carne e osso.

Todos esses trabalhadores pertenciam a 4 nacionalidades, dado que foram as respectivas embaixadas que forneceram esses elementos: Índia, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.

Informo também V.Exa que aquele número peca por duplo defeito, visto que, se por um lado, é colossalmente subestimado, por outro, assenta na obscena concupiscência humana. Na verdade, àquele número têm de se adicionar os de muitas outras nacionalidades – Quenianos e Filipinos, p.e. -, bem como de muitos outros milhares de trabalhadores que faleceram e que as autoridades esconderam. Sim Senhor Presidente, esconderam. E àqueles que não conseguiram esconder, recusaram autópsias, ficando assim libertas para reivindicar como motivo para aqueles óbitos, as causas naturais. Um exagero claro!

Somam-se ainda muitos milhares que faleceram nos grotescos dormitórios e buracos com colchões onde se acumulavam – e acumulam – Seres Humanos escravizados, como consequência de abjectas condições de trabalho: 12 horas de trabalho diárias sob um sol de 40.ºC, uma única folga semanal quando se tem sorte, ida a casa apenas ao fim de dois anos de trabalho – se ainda estiverem vivos, claro -, um magnífico salário de duzentos e tal euros mensais, confisco de passaportes e sevícias psicológicas sem fim.

Veja V.Exa, a conveniente falta de memória do governo Catari e da imaculada FIFA. Certamente por distracção, como não poderá deixar de ser. Desconhecem que morreram Seres Humanos, às pazadas, debaixo dos seus narizes. Não o fazem certamente por mal, mas apenas, no fundo, por um acto de infinita misericórdia para com a honradez e pundonor dos dirigentes da FIFA e das autoridades Cataris.

A palavra vergonha não descreve o horror humano de gente pobre que apenas tentou melhorar a sua vida e das suas famílias em terras distantes.

Mas vergonha Sr. Presidente, senti eu, quando escutei um diplomata Português em Doha a justificar, com o teor de melanina da pele, o facto das empresas no Catar colocarem os trabalhadores de tez mais escura a trabalhar nas horas de maior calor. Choro ou riu?

Excelência,

Eu já decidi. Não vou assistir na TV a qualquer jogo desse ignóbil mundial, mesmo que a nossa selecção atinja a final. Perante Deus e a minha consciência, não posso vender a minha alma ao diabo. Sim, sr. Presidente, ao diabo. E o diabo serão lucros pornográficos e milhões de espectadores, ambos serenamente sentados sobre milhares de cadáveres humanos. Gentes grávidas de esperança, mortas pela concupiscência vergonhosa da FIFA e de um governo Catari que soube, como ninguém, exercer o poder do dinheiro sobre o mais fundo da miséria da natureza humana.

Eu já decidi sr. Presidente.

Permita-me desafiar V.Exa a não se deslocar a qualquer dos estádios eivados de ignomínia. É que existe um abismo infinito que separa a dignidade humana e o Cristo das Bem-Aventuranças, da vã glória, da “vanitas” que nos mata.

O gesto de V.Exa seria uma marca indelével cravada a escopro na pedra da história, seria um grito de alma pela dignidade humana. Se o trabalho dignifica, não pode existir maior absurdo do que morrer a trabalhar. Defender a vida é também defendê-la dos estádios da ignomínia.

Atenciosamente

P.N.Pimenta Braz

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