Opinião | 14-10-2022 09:28

O Gaspar e a Kikas 

Santana-Maia Leonardo

A minha avó era uma mulher bonita, alta, elegante, de sangue nobre, que gostava de tocar piano e de viajar. O meu avô, pelo contrário, tinha 1,60m de altura, uma deformidade física, que foi o preço que teve de pagar para sobreviver à febre tifóide na infância, deformidade essa que nunca o diminuiu, nem impediu de ascender na vida a pulso. Era um homem extremamente culto, que gostava do campo, mas as únicas viagens que gostava de fazer eram de casa para o monte.

Com a partida da Filipa, ficou um vazio imenso no meu escritório que só veio a ser preenchido no dia em que encontrei o Gaspar a passear pachorrentamente pelo largo do tribunal, mais precisamente no dia 1 de Setembro de 2014. Era um gato azul russo, de cor cinza, imponente do alto dos seus 8Kg.

Uma vizinha do meu escritório apanhou-o e perguntou-me se não queria ficar com ele. Era um gato vadio, muito meigo e era uma pena que não tivesse quem tratasse dele.

É bom recordar que os gatos não são como cães. Nós mandamos nos cães, mas os gatos é que mandam em nós. Mas resolvi fazer a experiência. Deixei-o passear-se pelo meu escritório, depois dei-lhe a conhecer os seus aposentos, uma grande sala de estar equipada com os mais modernos equipamentos para gatos e um quarto com casa de banho privativa e vista para o quintal. O Gaspar, depois de vistoriar todos os recantos, saltou para cima da cama, apalpou o colchão e, finalmente, deitou-se. Olhou para mim e disse: “ Agradam-me as instalações. Eu fico com o apartamento.

E, a partir deste dia, passou-me a fazer companhia no escritório, ocupando a poltrona da Filipa que permaneceu em cima da minha secretária. É um gato tipicamente alentejano: de poucas falas, andar pachorrento e uma enorme barriga, que lhe valeu a alcunha do “Bucha”. Todos os meus clientes gostam do gato pela sua beleza, imponência e simpatia.

Numa noite de Julho de 2017, estava eu a falar com o Gaspar na varanda do seu quarto, quando ele se sai com esta: “ Gosto muito de ti, mas faz-me falta uma companhia mais nova para brincar comigo.

Mas tu pensas que é fácil arranjar uma companhia para ti ou para qualquer pessoa, nos tempos que correm? E, depois, se tu te deres mal com ela, que é o mais certo, o que é que eu faço?

Eu confio no teu instinto. ”, respondeu-me.

No dia 27 de Julho de 2017, fui à veterinária em Abrantes comprar a ração gastrointestinal para o Gaspar, a única que ele pode comer, por razões de saúde. Quando estava a pagar a ração, uma gata minúscula, com pouco mais de um mês de idade, começou a roçar-se nas minhas pernas. Apanhei-a… A gata era de cor branca malhada de amarelo, pequenina, elegante, alegre e atrevida.

Encontrámos esta gata na rua e andamos à procura de um dono que a trate bem, porque ela é muito mansinha. Não conhece ninguém que queira uma gata? ”, disse a funcionária.

Por acaso, até conheço. Chama-se Gaspar e é um gato porreiro .”

Quando cheguei com a gata ao escritório, o Gaspar nem queria acreditar. Era precisamente a gata dos seus sonhos. Foi a minha neta Laura que a baptizou com o nome de Kikas e o nome assentou-lhe que nem uma luva. No entanto, o seu tamanho contrastava com a enormidade do Gaspar, pelo que reeditei no escritório a célebre dupla do “Bucha e Estica” que fez as delícias da minha infância.

O matrimónio realizou-se poucos dias depois. E a verdade é que o Gaspar e a Kikas levaram à letra a profecia de S. Mateus: “ Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe “. Com efeito, a partir daquele dia, a Kikas passou a viver em cima do Gaspar como se fossem uma só carne.

É curioso como duas pessoas de temperamento tão diferente e de gostos opostos se conseguem dar tão bem. Mas provavelmente é precisamente este o segredo. Os meus avós maternos também eram pessoas muito diferentes, quer fisicamente, quer por temperamento. A minha avó era uma mulher bonita, alta, elegante, de sangue nobre, que gostava de tocar piano e de viajar. O meu avô, pelo contrário, tinha 1,60m de altura, uma deformidade física, que foi o preço que teve de pagar para sobreviver à febre tifóide na infância, deformidade essa que nunca o diminuiu, nem impediu de ascender na vida a pulso. Era um homem extremamente culto, que gostava do campo, mas as únicas viagens que gostava de fazer eram de casa para o monte, que distava 7 km dali. Ou seja, a minha avó era uma mulher da cidade e o meu avô era um homem do campo.

No entanto, também eles foram uma só carne. Vi-os sempre juntos como se fossem uma só pessoa. E foi assim até ao final da sua vida, tendo ambos partido com poucos meses de diferença a separá-los até porque não podiam viver um sem o outro. A minha avó partiu primeiro, porque gostava mais de viajar, mas o meu avô acabou por não conseguir ficar sozinho muito tempo e, logo que conseguiu transporte, foi ter com ela.

Quando vejo o Gaspar e a Kikas deitados, uma em cima do outro, na poltrona da Filipa que continua em cima da minha secretária, não posso deixar de recordar a minha avó Assunção e o meu avô Santana a quem tanto devo.

Ao contrário dos meus avós, não sou crente, não acredito na outra vida, nem tão pouco na reencarnação. Mas há coisas que eu próprio não sei explicar.

Certa noite, estava eu a trabalhar junto da Kikas deitada sobre o Gaspar na poltrona da Filipa, quando, de repente, fui tomado de assalto por uma estranha sensação. E, ao olhar para a poltrona da Filipa, vi, ali sentados de mãos dadas, a minha avó Assunção e o meu avô Santana a velar por mim como sempre fizeram.

Santana-Maia Leonardo

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