Opinião | 07-01-2022 07:00

O Velho do Restelo

Santana-Maia Leonardo

O discurso do Velho do Restelo parece dirigido a todos nós, portugueses, que continuamos a validar as políticas de despovoamento e desertificação do território nacional levadas a cabo pelos sucessivos governos, em nome da “vã cobiça”(…) No século XXI, Portugal continua a esvaziar-se para Lisboa e de Lisboa para o mundo.
Santana-Maia Leonardo

Para compreender o valor simbólico do episódio do Velho do Restelo, é importante ter em conta que Os Lusíadas foram escritos sessenta anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia e trinta anos após a célebre carta de D. Afonso de Albuquerque ao rei D. Manuel I em que afirma que “as cousas são já despesa”.  Ou seja, apesar de Camões ter colocado o Velho do Restelo no momento da partida da armada de Vasco da Gama para a Índia, a verdade é que a personagem do Velho do Restelo foi criada por Camões, 60 anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia, quando se começam a fazer sentir sobre o reino os efeitos negativos dos Descobrimentos, resultado da reconhecida falta de capacidade de liderança, organização e planificação típica dos povos que não se governam, nem se deixam governar.  É o próprio Camões que, no final de Os Lusíadas, profundamente amargurado, é obrigado a dar razão à voz corrente na França, na Alemanha, na Itália e na Inglaterra de que os portugueses são melhores para ser mandados do que para mandar (“Fazei, Senhor, que nunca os admirados/ Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,/ Possam dizer que são pera mandados, / Mais que pera mandar, os Portugueses”.)

Aliás, é impossível não ver a figura e a voz de Camões naquele velho de aspecto venerando, que ficava nas praias, entre a gente, e que falava com a autoridade de um saber de experiências feito. O Velho do Restelo, ao contrário do que para aí se lê e escreve, não é contra os Descobrimentos. É contra a forma como os Descobrimentos foram levados a cabo pelos dirigentes portugueses. E o discurso do Velho do Restelo continua hoje mais actual do que nunca.

O Velho do Restelo identifica, de imediato, a principal causa do fracasso económico dos Descobrimentos e que continua a ser hoje a principal causa da ruína económica das políticas dos sucessivos governos: a Ganância.

Ó Glória de mandar, ó vã cobiça/ Desta vaidade a quem chamamos Fama!” (…) “Sagaz consumidora conhecida/ De fazendas, de reinos e de impérios!/ Chamam-te ilustre, chamam-te subida,/ Sendo dina de infames vitupérios;/ Chamam-te Fama e Glória soberana,/ Nomes com quem se o povo néscio engana! (…)”

E a verdade é que ainda hoje o povo néscio, ou seja, as pessoas ignorantes e estúpidas continuam a ser enganadas pelos chico-espertos com o mesmo tipo de balelas. E governantes e políticos sem escrúpulos ainda têm o descaramento de classificar como Velhos do Restelo todos aqueles que se opõem às suas políticas de saque e de pilhagem que têm arruinado e empobrecido, sistematicamente, Portugal e enriquecido os mesmos de sempre.

Aliás, o discurso do Velho do Restelo parece dirigido a todos nós, portugueses, que continuamos a validar as políticas de despovoamento e desertificação do território nacional levadas a cabo pelos sucessivos governos, em nome da “vã cobiça”: “Por quem se despovoe o Reino antigo/ Se enfraqueça e vá deitando a longe; (…)”

No século XXI, Portugal continua a esvaziar-se para Lisboa e de Lisboa para o mundo. Os portugueses gostam muito de cantar o hino e fazer proclamações de portuguesismo nos jogos de futebol, mas falta-lhes o sentido do colectivo e do sacrifício pela comunidade onde estão inseridos. Gostam muito da sua terrinha, mas têm mais do que fazer do que sacrificar-se por ela. Gostam tanto da sua terrinha como do clube da sua terra. Bobby Robson definiu clube como “orgulho na tua cidade”. Só que os portugueses querem lá saber da sua cidade. Os portugueses gostam é de ganhar, sem olhar a meios. Por isso, é natural que 95% dos portugueses se colem aos três clubes ganhadores, o que é um caso único no mundo. Mas ser português é precisamente isto: cada um para si em busca das prometidas “minas de ouro” e os outros que se lixem.

Camões, no final de Os Lusíadas, faz um apelo ao Rei para  tomar “conselho só d’exprimentados/ Que viram largos anos, largos meses,/ Que, posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe.” Ou seja, para tomar conselho dos Velhos do Restelo, a voz da razão, alicerçada num saber de experiências feito, e não nos Chico-Espertos do Restelo, movidos exclusivamente pela ganância e pela cobiça.

Mas, infelizmente, nem o Rei seguiu o seu conselho, nem os portugueses, que continuam a desdenhar da sabedoria dos Velhos do Restelo e a entregar os destinos do país a chico-espertos, movidos unicamente pela ganância e pela cobiça.

Santana-Maia Leonardo

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