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“Atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”

José Miguel Noras

Já não bastava o desaproveitamento deste rio em áreas essenciais para o progresso regional. Teve (e tem) de conviver com ancestrais promessas de regularização da sua bacia hidrográfica (para não lembrar a utopia da navegabilidade). Assiste, agora, à caricata aberração nocturna de possuir duas ribatejanas pontes (a “velha” e a “nova”) permanentemente às escuras. Tudo isto, por certo, “em nome das conveniências públicas”

Há duas “Viagens na minha terra” cuja leitura é deveras apaixonante. A primeira teve Almeida Garrett como cicerone e viu (pela primeira vez) a luz em 1846. A segunda é da autoria de Afrânio Peixoto: “O título é original, a-pesar-de tomado ao livro encantador de Garrett. O possessivo, que reivindiquei, é o meu galardão... não andei por todo Portugal; também êle apenas pelo vale de Santarém; o plural indetermina. O seu livro é um romance; êste, visões fugidias, do espaço e do tempo: mais próprio, portanto, lhe é o título adoptado.” — explica Afrânio na abertura do seu livro “Viagens na minha terra”, publicado em 1938.É, também, a este mestre da Academia Brasileira de Letras que devemos o “hino da cidade”: “A história de Santarém é a da Pátria. Por ela passaram ruínas e tristezas [...]. Mas Santarém vive e viverá.[...] Não te esquecerei... Santarém!”.Afrânio Peixoto ironiza, nesta sua obra, a propósito da inscrição existente na campa rasa de Pedro Álvares Cabral. Regista a omissão da descoberta do Brasil e assinala, ainda, o “paradoxo” das múltiplas referências a Isabel da Castro, mulher do “fidalgo que trouxe à luz um mundo ignorado”.Este escritor brasileiro salienta, mesmo, que, para a esposa de Cabral (ou para os seus herdeiros), “a glória maior da família era [D. Isabel] ter sido camareira de uma princesa... O Brasil descoberto, a segunda armada à Índia, era nada, pois se podia omitir.”.Quem entrar na Igreja da Graça, desprovido de conhecimentos sobre a tumulária ali exposta, é levado a supor (pela grandiosidade da escultura) que o sarcófago de Pedro de Menezes, primeiro Governador de Ceuta, corresponde ao “leito eterno” de Pedro Álvares Cabral. Recorda-se que houve duas aberturas oficiais do túmulo do descobridor do Brasil: uma em 1882 e outra em 1903. Ambas tiveram como pretexto identificar as “relíquias” de Cabral e, simultaneamente, afastar dos brasileiros as dúvidas quanto à localização exacta do sepulcro deste fidalgo e navegador.A pesquisa de 1903 teve raiz no “auto” da missão de 1882. Surpreendentemente, este documento concede grande destaque a um ovino encontrado no espaço tumular. É impressionante o conjunto de elementos fornecidos: praticamente nenhuma medida do esqueleto do “carneiro” ficou por revelar, como se da eleição de uma “misse” oitocentista se tratasse. Curiosamente, não foi feita qualquer alusão às (supostas) moedas ali detectadas, nem consta que algum espécime numismático tenha dado entrada em nenhum museu do nosso país.Pedro Álvares Cabral terá adormecido para Deus em 1520 e a sua mulher em 1538. O almirante ficou, desde logo, na Igreja da Graça, mas em espaço distinto do actual. A capela onde hoje se encontra só mais tarde ficou preparada para receber as suas gloriosas cinzas.Não se me afigura chocante a omissão (na epígrafe tumular) do feito de Cabral, pois o seu nome e o descobrimento do Brasil fundem-se numa “gesta” só. Do mesmo modo, faz sentido a referência à titularidade da capela (“é de Isabel de Castro”), bem como a divulgação do apreço que a infanta D. Maria (filha de D. João III) dedicava à viúva do augusto navegador.De facto, toda a gente (ou quase toda a gente) sabe quem foi Pedro Álvares Cabral. Lendo a inscrição da respectiva campa, ficamos a conhecer, um pouco, sobre a sua amada (e mãe do seu único filho, António). O nome de Isabel de Castro (mulher do navegador) não vem nas enciclopédias. O “Grande Livro dos Portugueses” omite-a. Porém, era sobrinha do grande Vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque. E talvez tenha percebido, como ninguém, a precaridade das grandezas do mundo. Todas juntas, seriam pequenas diante do feito de seu marido e do amor que terão experimentado e vivido, em Santarém.Graças a Isabel de Castro, a simplicidade é um “descobrimento” sempre desperto e actual, como uma lente que, discretamente, amplia o alcance da “Invenção do Brasil”, por Pedro Álvares Cabral, “fidalgo de Belmonte” e agricultor do Ribatejo. O que é verdadeiramente grande não carece de inscrições lapidares, porque se torna universal e eterno. Post ScriptumSenhorioA Câmara do Porto, que visitei no dia 17 de Outubro, possui cerca de 17 mil habitações (recorde do país).Toda a organização deste sector é coordenada pelo Vice-Presidente da autarquia, que tem a seu cargo os pelouros da habitação e da acção social.Conforme disse, naquela oportunidade, ao Dr. Paulo Morais (número dois da cidade do Porto), aqui está um cargo que poucos ousariam ocupar: o de maior senhorio em Portugal, com as consequentes dores de cabeça daí resultantes.ComendadorAlbertino Filipe Pisca Eugénio já está na história de Santarém, pela sua obra à frente da primeira fábrica de cervejas desta cidade (alavanca da zona industrial da Quinta do Mocho).Este engenheiro e gestor tem-se afirmado, igualmente, pelas suas virtudes humanas, na direcção da Cruz Vermelha Portuguesa.Em Junho deste ano, tornou-se o primeiro deputado municipal de Santarém a efectuar uma declaração de voto, baseando-se no compromisso de honra que assinou ao ser distinguido como Comendador da Ordem do Mérito Industrial.Eis aqui, sem dúvida, um exemplo de carácter para todos quantos supunham que a honorabilidade e a ética já tinham metido férias em Portugal.Perigosa vergonha“Até os rios têm seus fados. Uns nascem e morrem livres. Outros [...] nascem independentes, e são escravizados em nome das conveniências públicas.” — lê-se nas “Memorias sobre as aguas de Lisboa”, escritas em 1875, por Augusto Montenegro.Esta citação vem a propósito do “fado” do Tejo. Já não bastava o desaproveitamento deste rio em áreas essenciais para o progresso regional. Teve (e tem) de conviver com ancestrais promessas de regularização da sua bacia hidrográfica (para não lembrar a utopia da navegabilidade). Assiste, agora, à caricata aberração nocturna de possuir duas ribatejanas pontes (a “velha” e a “nova”) permanentemente às escuras. Tudo isto, por certo, “em nome das conveniências públicas”.Nota (lapalissada) - Nas citações é respeitada, na íntegra, a ortografia seguida pelos respectivos autores.Santarém (Marvila), 24 de Outubro de 2002

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