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Não tenho perdão

Alberto Bastos *

“Confesso que ao entrar para este parágrafo me vieram as lágrimas aos olhos. Se for expulso da profissão não vou reclamar. Mereço. Um jornalista não se pode emocionar para não perder a objectividade. E eu emocionei-me. Emocionei-me agora e emocionei-me quando o homem que gritava me confessou o seu medo.”

Era de noite. Ninguém tinha baixado os estores e o luar entrava pelas duas amplas janelas da divisão. Era de noite mas não sou capaz de dizer se eram três, quatro ou cinco da manhã. Os jornalistas têm que ser precisos mas eu não consigo precisar a hora a que tudo aconteceu. Nem o dia. Nem sequer o mês. Foi este ano. Tenho a certeza que foi este ano, mas um ano tem trezentos e sessenta e cinco dias. Mais um quando é bissexto. Já falhei o quando, que é um dos elementos essenciais da notícia. Não tenho perdão.Uma enfermeira entrou e foi direita à cama do canto direito. Junto a uma das janelas. Eu estava no lado contrário, ao pé da porta. Quarto piso de um hospital. Seria o de Abrantes? O de Torres Novas? Atrás da enfermeira entrou uma auxiliar. Disso eu lembro-me. Bata branca seguida de uma bata às riscas. Amarelas? O velhote gritava há horas sem parar. Ninguém conseguia dormir. Noventa e três anos. Uma idade assim não se esquece. Se calhar ainda me vou recordar de tudo. A enfermeira era muito jovem. Tinha um longo cabelo que deslizava em ondas pelas costas. Castanho claro. Acho que era castanho claro. Um jornalista não pode deitar-se a adivinhar como eu estou para aqui a fazer. Não tenho perdão.Soergui-me apoiado no cotovelo direito. A luz que vinha do corredor dava para ver tudo o que se passava. E havia o luar. Já falei no luar, que cabeça a minha. Ao jantar tinham-me dado uma sobremesa de comprimidos. Dois ou três. Um pouco antes de desligarem a televisão, que estava entre as duas janelas a dois metros e meio do chão, mais uns tantos. Confesso que estava zonzo. Um jornalista está sempre de serviço e eu deixei que me atordoassem com medicamentos. Mais um imperdoável falhanço, reconheço. Nem o leitor mais benévolo me poderá perdoar. E não tinha um bloco de notas por perto. Nem uma mísera esferográfica. Doía-me a perna direita. Doía-me o corpo. Os gritos do velhote partiam-me o coração. Eu devia ter anotado tudo. Como nos ensinam. Como é nosso dever. Falhanços atrás de falhanços. Esqueci-me já do nome do homem que gritava, mas nunca esquecerei o que me disse no dia seguinte: “Eu gritava porque tinha medo”. Uma criança de noventa e três anos, longe de casa, amarrada a uma cama, ligada a máquinas que não entendia. No escuro havia pontinhos e sinusóides brancas no monitor verde. De tempos a tempos um bip e depois outro. “Eu gritava porque tinha medo” disse-me com um sorriso envergonhado.Confesso que ao entrar para este parágrafo me vieram as lágrimas aos olhos. Se for expulso da profissão não vou reclamar. Mereço. Um jornalista não se pode emocionar para não perder a objectividade. E eu emocionei-me. Emocionei-me agora e emocionei-me quando o homem que gritava me confessou o seu medo. Lembrei-me do meu avô Alberto Carvalho, aos gritos, pouco antes de morrer. Eu tinha sete anos e ele era a pessoa de quem eu mais gostava. Pronto, descarrilei por completo do trilho da objectividade. Os leitores mais atentos já perceberam que eu não sou de fiar. Adeus credibilidade. Adeus competência profissional. Deixem-me repetir a ladainha. Não tenho perdão.Foi tudo muito rápido. A enfermeira pegou no rolo de adesivo que estava em cima da mesa por debaixo da televisão, cortou um pedaço e colou-o na boca do velhote. Um enfermeiro entrou na sala quase a correr. A auxiliar, uma gorducha na casa dos quarenta, retirou o adesivo da boca do doente. Com um puxão rápido e preciso. Ouviu-se claramente o gggrrrraaaahhhhh. Depois ficou tudo em silêncio. A enfermeira, o enfermeiro, a auxiliar, o velhote e eu. Estão aqui as respostas a duas das cinco sacramentais perguntas. O quê? E como? Mas sem o resto nada feito. Eu estava internado, doente, fragilizado, mas que ninguém me desculpe por isso. O que aconteceu era notícia. Tenho a certeza que era notícia. E ficou por contar. Não tenho perdão.* Chefe de redacção de O MIRANTE

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