O homem da gaita de foles
José Salvado toca e constrói os instrumentos
José Maria Morais Salvado, 68 anos quase feitos, trabalha mais hoje do que quando era ferroviário. Apesar de actualmente não exercer nenhuma profissão a tempo inteiro é um autêntico homem dos sete ofícios. As suas mãos constróem artefactos em cimento, madeira, pele, e outros tantos materiais. Mas como ele é mesmo conhecido é como o homem da gaita de foles, instrumento que além de tocar, constrói de forma tradicional.
As paredes da sala estão cobertas com fotos de José Maria Salvado mostrando um dos seus muitos ofícios – tocador de gaita de foles. Na companhia de mais dois amigos formam o trio denominado “Grupo de Gaiteiros os Amigos da Lamarosa”. Mas este homem, beirão de nascimento, é o único a tocar gaita de foles.A tocar e a construi-las. Um dia, sem mais nem menos, decidiu comprar uma gaita de foles. Disseram-lhe que em Coimbra as vendiam e pôs-se ao caminho. De comboio, o meio de transporte que utiliza para onde quer que vá – “como reformado da CP não pago as viagens e se o tenho aqui ao pé de casa...”, diz em jeito de justificação.“Quando comprei a gaita de foles perguntei lá na loja como é que aquilo se tocava mas eles disseram que também não percebiam nada daquilo, só as vendiam”, diz. O regresso a casa foi feito a “matutar” como é que havia de dar uso ao instrumento.“Vi-me à rasquinha para a montar e estive quase para desistir de aprender. Até pensei em deitá-la fora”. Mas a força de vontade era muita e conseguiu aprender. Sozinho. “Nunca comprei livros para aprender a fazer fosse o que fosse”.Não contente em já saber tocar gaita de foles, José Salvado quis também construir uma. “Tirei os pormenores todos do funcionamento da gaita de foles e comecei a fazê-las”. E desengane-se quem acha que fazer uma gaita de foles é tarefa fácil. “Isto é muito complicado”, diz o gaiteiro. A bolsa, que pode ser feita em várias peles, tem no interior um depósito de borracha que tem de ser vulcanizada – a máquina de vulcanizar também foi feita por José Salvado, primeiro a gás, depois a electricidade.Uma gaita de foles, além do fole, em pele de vitelo, cabra ou avestruz, é formada por quase uma dúzia de peças em madeira que se encaixam umas nas outras. Os instrumentos que José Salvado tem expostos na parede foram feitos com madeira de freixo ou de nogueira. E nem aqui o gaiteiro deixa entrar mãos alheias. Foi ele próprio, com um motor de uma velha máquina de lavar roupa que fez um torno para esculpir as peças necessárias ao funcionamento da gaita de foles. A ponteira (corneta) é imprescindível. “A ponteira é que dá o som, sem ela a gaita de foles não tem utilidade”, diz o gaiteiro.A única coisa que José Salvado não constrói – “ainda não me deu para tentar fazer uma” – é a peça mais pequena do instrumento, a palheta, que está entrincheirada na ponteira. É a que faz o som sair para o exterior e tem de ser molhada antes de se começar a tocar.Uma gaita de foles demora cerca de dois dias a fazer. Não é que José Salvado alguma vez tenha contado o tempo, as suas são feitas aos poucos, mas viu recentemente um programa na televisão onde um construtor dizia que demorava dois dias.“Deus me livre alguma vez vendê-las”, diz o gaiteiro, adiantando que nunca vendeu nada do que faz. Se houver alguém que lhe peça para fazer uma, José Salvado diz que “se for uma pessoa que eu entendo que devo fazer construo-a mas a seguir dou-lha, não a vendo”.O tempo não é problema para José Salvado. Mora sozinho depois de um casamento falhado e por isso não tem nada nem ninguém a quem dar satisfações. “E quando me apetece descansar um bocadinho vou passear”, diz. De comboio, claro, que carro nunca teve nem carta de condução tirou.Nem sempre as coisas saem como o gaiteiro pretende. Perfeccionista ao extremo, diz preferir deitar uma gaita de foles fora do que ficar com uma mal construída. A maior parte das coisas que constrói nunca as viu fazer. “Imagino, vou-lhe dando umas voltas e se não sai bem à primeira volto a fazer, há-de sair à segunda.”, diz em tom de brincadeira.Sempre esteve ligado à música. Foi vocalista de vários conjuntos musicais e até teve um “por sua conta” - chamava-se Grupo Quatro e era do Entroncamento – e director do rancho folclórico da Lamarosa durante oito anos.Além de já ter ensinado vários jovens a tocar o instrumento José Salvado fundou há uns anos o “Grupo de Gaiteiros Os amigos da Lamarosa”, nesta localidade do concelho de Torres Novas. É com o dinheiro que arrecada em cada actuação – “180 euros para o grupo mais o transporte” – que compra os materiais necessários para fazer as gaitas.“Eu por mim até tocava de graça, só pelo gosto, mas os outros dois não estão para isso”. Os dois companheiros do grupo – um toca caixa e outro bombo (duas espécies de tambores) – também não querem nada com o fato tradicional dos gaiteiros. José Salvado bem tentou que vestissem a kilt, como os escoceses, mas quando falou nisso os colegas olharam-no de lado – “essa agora, vestir saias é que não”. Por isso a farda é camisa branca, calça e colete preto.A precisão e a paciência com que José Salvado faz as gaitas de foles vêem-lhe do tempo em que trabalhava nas oficinas da CP e fazia as molas para as rodas. “Eu e mais uns 20 demorávamos um dia inteiro a fazer as molas dos rodados das carruagens até em 1965, quando foi comprada uma máquina que fazia o mesmo serviço em duas horas”, diz.Margarida Cabeleira
Mais Notícias
A carregar...