Especial 25 de Abril | 20-04-2005 03:31

A angústia da guerra vivida à distância

A angústia da guerra vivida à distância

Suportaram a distância, a incerteza dos dias e ainda conservaram forças para ser o suporte de uma família separada pela violência da guerra colonial. As mulheres dos combatentes viveram o outro drama do conflito. Hoje ainda conservam as marcas de um combate travado fora do campo de batalha.

Janeiro de 1966. Fernanda Correia tinha 20 anos e esperava o seu primeiro filho. O marido, então capitão na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, preparava-se para iniciar a primeira comissão em Moçambique.O peso de uma gravidez já avançada, a angústia e a incerteza de uma guerra travada em terras longínquas de África fizeram antecipar o parto três semanas. “Foi muito violento ver o marido partir sem saber se chegava a conhecer o filho”, recorda.O primeiro descendente do casal nascia alguns dias depois na casa dos avós maternos, em Alpiarça. “Mãe e filho estão bem”. Foi este o conteúdo do telegrama escolhido para dar a notícia ao recém pai que acabava de desembarcar em Mueda e se preparava para partir mais para o norte de Moçambique, uma zona interdita a mulheres pela violência da guerrilha.Só seis meses depois pai e filho viriam a encontrar-se. Foi num dia quente de Agosto em Nampula, Moçambique, e o momento nunca mais se apagou da memória de Fernanda Correia. “Apesar de ainda não o conhecer, o meu filho saltou para os braços do pai”, relembra. O segundo filho do casal acabaria por nascer já em Moçambique (ver peça ao lado). À distância de quase quatro décadas Fernanda Correia, 59 anos, já consegue esboçar um sorriso quando fala desses tempos. Mas nem sempre foi assim. Essa mesma guerra fê-la tomar a decisão mais difícil da sua vida: deixar os dois filhos em Portugal durante um ano, a cargo dos avós maternos, para acompanhar o marido durante a segunda comissão, em Angola.“A separação dos meus filhos era extraordinariamente dolorosa, mas sabia que eles estavam bem com os meus pais. Em relação ao meu marido não sabia o que podia acontecer. Preferia estar mais perto”. Viveram quase sete anos em África. O marido, preparado para lidar com situações limite, lidou melhor com o drama da guerra. Fernanda Correia teve que recorrer ao apoio de um psicólogo depois de regressar de Moçambique. Confessa que ainda hoje há dias em que se sente triste sem razão aparente.Nos filhos a guerra não deixou marcas, mas obrigou-os a mudar muitas vezes de casa. Impediu-os de ganhar raízes. Os amigos eram feitos entre filhos de militares. A casa de Santarém funcionou sempre como base, mas a família passou pelos Açores, Lisboa, Santa Margarida e Évora.Hoje os filhos compreendem melhor a missão que o pai teve que cumprir, mas na altura interrogavam-se com o porquê da ausência. Para colmatar os períodos de tempo sem o pai, Fernanda Correia aprendeu a preencher o espaço dos dois - mãe e pai. Tal como Felisbela Bernardo, 62 anos.Em 1969, quando o marido, também capitão na Escola Prática de Santarém, foi mobilizado a professora de geografia ficou em Santarém com a responsabilidade dos dois filhos, de ano e meio e três anos.A Guiné, o local que esperava o marido, era um dos palcos de guerra mais violentos, uma das razões que a levou a permanecer em Portugal. “Ir ou não ir tinha sempre consequências. E a angústia era a mesma”.A partida para Nova Sintra, na Guiné, aconteceu em Março. Três meses depois chegavam as más notícias a Portugal. Felisbela Bernardo estava a passar férias com os filhos na Nazaré quando, em Junho, recebeu um telefonema com hora marcada nos correios.Foi o marido o primeiro a dar-lhe a notícia do acidente. Uma mina rebentou e o militar perdeu uma perna. Depois de quatro horas debaixo de fogo foi resgatado graças à insistência de um piloto de helicóptero e de uma enfermeira.O marido antecipou-lhe assim a notícia que dias depois chegava também num telegrama seco e lacónico: “O general comandante do comando territorial independente da Guiné lamenta informar vossa excelência que o seu marido, capitão de cavalaria, Joaquim Bernardo, foi gravemente ferido em combate e que foi transferido para o HM 251 Bissau”. Durante vários anos guardou o telegrama até que há pouco tempo decidiu destruí-lo. O desembarque dos feridos é uma imagem que nunca irá esquecer. Chegavam à noite mergulhados no obscurantismo do regime de então. Depois as luzes abriam-se sobre uma sala repleta de macas. A recuperação do marido, com o apoio de especialistas alemães, foi um sucesso. E, hoje, as sequelas do acidente que o militar sofreu são praticamente imperceptíveis. A revolta, por sentir que toda uma geração foi sugada pela guerra, ainda se sente. É um sentimento difícil de apagar, tal como é difícil conter as emoções. Mesmo mais de três décadas depois.Ana Santiago

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