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Da arena para a barbearia

Jacinto Fernandes, o barbeiro que foi um destemido bandarilheiro

Nunca vestiu o traje de luces. O sonho de ser matador de toiros foi interrompido pela chamada para a guerra. Jacinto Fernandes acompanhou as maiores figuras nas arenas e hoje partilha a saudade com os clientes duma barbearia em Castanheira do Ribatejo.

Na pequena barbearia “Inácio”, no centro de Castanheiro do Ribatejo, Jacinto Fernandes corta o cabelo a um dos clientes habituais do estabelecimento. Entre as tesouradas vão fazendo comentários sobre a festa do Colete Encarnado que se aproxima. A festa brava é de resto o tema de conversa diariamente na barbearia, que muitas vezes se assemelha a uma verdadeira tertúlia tauromáquica. Jacinto Fernandes, de 53 anos, é um dos mais fervorosos participantes no debate. É que as mãos que hoje pegam no pente e na tesoura são as mesmas que durante décadas espetaram bandarilhas em toiros por praças de todo o mundo.O hoje barbeiro deixou a actividade de bandarilheiro há dois anos por motivos de saúde, mas o seu coração continua nas arenas que o fizeram vibrar. Ser toureiro sempre foi o seu sonho e foi por ele que aos 14 anos deixou para trás a terra que o viu nascer, a Aldeia da Luz no Alentejo, e rumou para a capital nacional da tauromaquia de então: Vila Franca de Xira.Com a coragem de quem luta por o seu maior sonho dirigiu-se à quinta do Maestro José Júlio e pediu-lhe para aprender com ele. Estava dado o primeiro passo para atingir o seu objectivo e também iniciada a ligação afectiva à terra que adoptou e pela qual foi adoptado “Sou vilafranquense, não nascido, mas criado”. Aos 20 anos Jacinto Fernandes tornou-se novilheiro praticante e parecia que nada o iria impedir de realizar o desejo com o qual cresceu. Em 1974 o sonho foi entretanto interrompido com a ida para a guerra colonial para Angola. Um acontecimento que viria a ser determinante para o caminho que depois seguiu de regresso a Portugal. Os 18 meses passados em Angola “atrasaram e complicaram tudo”. A necessidade de ter que se deslocar para Espanha para chegar a toureiro apresentou-se como algo de impossível para Jacinto Fernandes, por questões financeiras. Sem apoios, decidiu abandonar o sonho maior e optou por ser bandarilheiro.Sentiu então uma “tristeza” e grande impotência, porque “queremos sempre atingir o máximo. Fiquei com pena”. Não conseguiu o “máximo”, mas garante sentir-se realizado pelos anos em que vestiu o fato de fios de prata e enfrentou o toiro antes de chegar às mãos dos toureiros. Em 20 anos de actividade acompanhou pelas praças do mundo nomes como Sónia Matias, José Júlio, Mário Coelho, Luís Miguel da Veiga, António de Portugal. Cada corrida era um momento único e irrepetível. A “adrenalina era muito grande. Com a praça de toiros cheia uma pessoa galvaniza-se”, recorda hoje com os olhos a brilhar de emoção como se estivesse neste momento numa praça cheia. Filho dá continuidadeà arte As inúmeras cornadas que levou ao longo dos anos nunca o desmotivaram. Nem mesmo aquela de 15 centímetros que sofreu na perna direita logo no início da sua “profissão de risco”. No entanto, as mazelas acumuladas provocaram lesões graves nos joelhos que o obrigaram a retirar-se.Em 2004 despediu-se da arena na sua terra, a Aldeia da Luz, para a qual Jacinto Fernandes era o maior orgulho. Apesar da despedida não ter sido na praça de toiros onde os seus sonhos se começaram a formar em criança, entretanto coberta pelo Guadiana, vai ficar para sempre na memória do bandarilheiro. Sobretudo, porque no dia em que disse adeus à actividade, o filho mais novo, Filipe Fernandes, de 20 anos, prestou provas para bandarilheiro praticante. “É um grande orgulho para mim ver o meu filho dar continuidade a este sonho”.Depois da arena, veio a barbearia como uma opção natural. A actividade de barbeiro foi, na verdade, a que primeiro exerceu ainda na sua terra natal quando tinha apenas nove anos. Apesar de gostar do que faz, Jacinto Fernandes confessa-se: “a melhor parte são as conversas”.Enquanto corta cabelos na barbearia da Castanheira, recorda e partilha com os clientes e amigos as experiências das décadas de bandarilheiro. “À barbearia vão muitos aficionados e o tema de conversa é quase sempre a festa brava. A falar com eles dá-me a ideia que continuo na arena. Vou vivendo aquele sonho”. Sara Cardoso

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