Figura de múltiplos talentos
“A minha casa está transformada num armazém do Camões”, diz com humor Manuela Azevedo quando entramos no prédio onde vive há muitas décadas, no centro de Lisboa. Parte do mobiliário, peças de arte e artigos decorativos já estão inventariados para doar à Câmara de Constância e à Casa Memória de Camões. A jornalista e escritora não tem família directa e aos 95 anos decidiu deixar o espólio com destino marcado.Manuela Azevedo nasceu em Lisboa mas aos 10 anos rumou a Mangualde, na Beira Alta, onde o seu pai foi colocado como funcionário das Finanças. Foi aí que descobriu a apetência para a poesia e se revelou como “pessoa de acção”. Criou uma companhia de teatro com outras meninas da sua idade e promoveu espectáculos de beneficência. Foi também em Mangualde que publicou o seu primeiro livro de poesia. Viveu na Beira Alta até aos 23 anos, quando regressou a Lisboa para integrar os quadros do jornal República. Estudou em Viseu e Coimbra, mas não chegou a acabar o curso de Letras – “embora haja muita gente que me chama doutora”. O facto de não se ter licenciado não a complexou. “Nunca me interessou porque felizmente tenho feito muita coisa ao longo da vida”.Ainda em Mangualde chegou a pensar em seguir Belas Artes. Recebeu lições de pintura que lhe permitiram o domínio de algumas técnicas, traduzido nos quadros que pintou, alguns deles expostos nas paredes de sua casa. Esse era mais um talento. Mas venceu o da escrita, manifestado nas suas várias disciplinas: poesia, ensaio, novela, teatro, romance e jornalismo.Há pouco recebeu convite do Teatro Experimental de Cascais que está interessado em repor uma peça representada nos anos 50 (Camille e Fanny), interpretada por Igrejas Caeiro e Maria Laslandes. Uma peça que foi alvo da censura, tal como outra intitulada “Má Sorte”. Deixou de escrever porque era crítica de teatro. Ficou assim resolvido o potencial conflito de interesses.Antes havia deixado de pintar quando se confrontou com o movimento moderno, com as coisas novas que se faziam. A modéstia levou-a também a deixar a poesia quando conheceu a obra de Fernando Pessoa. As suas referências até então eram do século XIX, como Antero de Quental. Mas acabou por entrar no jornalismo pela mão da poesia.Quando publicou o livro “Claridade”, prefaciado por Aquilino Ribeiro, mandou um exemplar para o jornal República com um artigo dentro defendendo a eutanásia. Estava-se na primeira metade da década de 30. O director devolveu-lhe o artigo cortado pela censura e pediu-lhe mais textos. Na altura era professora de Português em Viseu. Voltou a escrever, voltou a ser censurada. Em 1933 começou como colaboradora do República. O convite para integrar os quadros não demorou muito. Assim entrava na imprensa nacional a primeira jornalista profissional.
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