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Uma mulher de causas

Uma mulher de causas

Manuela Azevedo e a sua paixão por Camões e Constância

Da sua figura frágil não se adivinha a alma de combatente e de mulher de causas. Manuela Azevedo, 95 anos, andou sempre à frente do seu tempo. Foi a primeira jornalista profissional da imprensa portuguesa, escritora multifacetada, crítica de arte, opositora do regime salazarista. Um dia descobriu Constância e Camões e largou tudo em busca de um sonho: construir na vila ribatejana a Casa Memória que vai materializar e perpetuar a sua paixão pela vida e obra do poeta.

Como surgiu a sua ligação a Camões e a Constância?Havia na primeira página do Diário de Lisboa, onde trabalhava, uma secção chamada “De ontem para hoje”. Eram pequenas notícias. E um dia vi uma notícia de meia dúzia de linhas que anunciava que a Casa do Ribatejo havia promovido uma excursão à casa de Camões em Constância.Uma notícia que lhe despertou a curiosidade?Eu nunca tinha ouvido falar em Constância. E era uma jornalista de peso. Nunca tinha ouvido dizer que Camões tinha uma casa ali. Telefonei para a Casa do Ribatejo a perguntar o que era aquilo. Não me souberam explicar e indicaram-me o doutor Adriano Burguete, que era médico no Chiado, para me esclarecer sobre o assunto. Telefonei para o doutor Burguete, que era um senhor com os cabelos todos brancos, de 80 anos, que me disse que melhor do que me explicar o que eram as ruínas da casa de Camões era eu ir lá com ele. E assim foi.Isso foi em que ano?Em 1952.Qual foi a primeira impressão com que ficou?A primeira impressão foi a da terra. Que era autenticamente camoniana na altura.Porquê?Porque estava selvagem como a natureza a fizera e como a poesia de Camões a retratava. O que já não acontece hoje.Foi nessa altura que começou a aprofundar o interesse pela poesia de Camões?Sim. Tinha estudado Camões, mas os meus poetas preferidos eram do século XIX. Como Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Alexandre Herculano.Como é que de repente ganha essa paixão por Camões?De repente senti-me atraída. O então presidente da câmara municipal prendeu-me também muito à terra. Era um tenente da Guarda Republicana de que já não recordo o nome. Esteve lá pouco tempo. Conheci lá uns quatro ou cinco presidentes de câmara antes deste que está lá agora. A câmara aliás fez parte da fundação da Associação Casa Memória de Camões em Constância.Como vê o facto de a Casa-Memória de Camões, que começou a ser construída em 1983, ainda não estar a ser aproveitada apesar de todo o dinheiro ali investido?Passaram-se situações difíceis para a associação. Foram-nos dando todo o dinheiro que pedíamos. Mas chegamos a esta altura e a coisa parou. Falta o equipamento e faltam também acabamentos.Há alguma perspectiva quanto à data de inauguração oficial da Casa Memória? Não.Onde é que pensa ir buscar os apoios para fazer o que resta?Espero que o Ministério da Cultura ainda cumpra o seu dever. Há promessas nesse sentido e até uma carta do IPPAR a dizer que recebeu da Assembleia da República por incumbência do Ministério da Cultura a decisão de nos entregarem 65 mil euros. Simplesmente esse dinheiro nunca chegou à nossa mão.Qual a importância dessa casa?A função da Casa Memória não é só memorar Camões, é também formar camonistas. E nós temos trabalhado nesse sentido com os fóruns internacionais de estudos camonianos e com os cursos pós-universitários…Que entretanto também foram suspensos por falta de apoios.Pois claro. Mas a Fundação Oriente diz que vai subsidiar, pelo que possivelmente no próximo ano já vamos fazer o décimo fórum.Qual é a sua opinião sobre o posicionamento do Ministério da Cultura sobre este processo?É de alguma desilusão. Em quanto vai ficar a construção da Casa Memória?A reconstrução completa e a instalação fica em cerca de trezentos mil contos (1,5 milhões de euros). Camões merecia mais atenção do poder político?Julgo sim. Embora haja quem diga que Camões e os camonistas estão acabados. Hoje já não se fala em humanismo nem em camonismo.Sente-se desiludida após tanta dedicação?Não, de maneira alguma. Mas gostaria de chegar ao fim da vida e ver tudo no seu lugar. Agora, tudo isto é muito importante e já está feito. Não pode ser estragado.Camões viveu mesmo naquele local em Constância?Temos uma cópia de uma carta do segundo conde de Abrantes, encontrada pela doutora Maria Clara Pereira da Costa no arquivo da família Themudo de Castro, que diz que vai construir naqueles sítios umas muito boas casas. É aquilo a que eu chamo o cartão de identidade da casa de Camões, que é de 1516. Até ao século XVIII foi conhecida como casa de Camões. Depois entrou em ruínas. Um senhor do Porto comprou-a, deitou abaixo a parte de cima e entulhou a parte de baixo. O que acabou por ser bom porque a casa manteve-se com as paredes exactamente com as mesmas medições da época.Essa zona foi mantida?Sim. Quanto à parte de cima, como não sabíamos como era, a ESBAL resolveu fazer uma coisa moderna, completamente diferente. Aqueles janelões que lá estão são inspirados no mosteiro dos Jerónimos. E a casa é manuelina. Fez-se uma torre que por dentro quase só tem paredes de vidro, que eu quero que só seja inaugurada quando tiverem versos de Camões e alusões à sua vida e obra. O gosto pelo desafioHá quantos anos é que dedica a sua vida praticamente em exclusivo à causa de Camões?Assim que me reformei, em 1985. No jornalismo tinha alcançado o topo. Não havia mais nada a fazer. Escritoras havia muitas iguais e melhores do que eu. Quem fizesse a casa de Camões é que de certeza não havia mais ninguém. Deixei tudo, cortei com tudo, meios literários, meios jornalísticos... E passei a viver cá (Lisboa) e lá (Constância).Continua a fazer isso hoje?Hoje vou a Constância menos vezes porque tenho menos lá que fazer. Quem está a gerir o Horto de Camões é o doutor Máximo Ferreira e a mulher, que são directores da associação. Está muito bem entregue. Era infernal para mim andar cá e lá. Quer dizer que a sucessão está assegurada?Já posso morrer descansada em relação ao horto.As batalhas mais duras já lá vão?Sim. Lembro-me por exemplo de quando a Câmara de Constância quis fazer um parque de campismo perto do monumento a Camões, onde hoje está o horto. Achei que era uma ofensa construir um parque de campismo naquele local. E que Constância devia criar ali uma zona camoniana. E levou a sua avante.Sim. Propus à câmara que me desse aquele terreno para fazer ali um horto com as plantas todas que o Camões falava. E pus mãos à obra. O Instituto Cultural de Macau subsidiou a instalação do jardim. O meu amigo professor Ribeiro Telles fez o desenho. Eu fiz a leitura total e minuciosa da obra de Camões para recolher os nomes das plantas. E nasceu assim o Horto de Camões.Acha que Constância e a região têm feito por merecer a sua devoção a essa causa?Pelo menos não me têm hostilizado. A câmara municipal tem todos os encargos de sustentação do Horto, que continua a pertencer à associação.A câmara tem sido uma boa parceira nessa causa?Agora tem sido.João Calhaz
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