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“As pessoas contavam mais segredos ao médico que ao padre”

“As pessoas contavam mais segredos ao médico que ao padre”

Orlando Lopes, médico natural da Chamusca, aos 84 anos ainda dá consultas

Tem 84 anos. É médico há 60 anos. Filho único de uma família da Chamusca que vivia do comércio. Orlando Lopes continua a dar consultas no seu consultório de Lisboa para entreter o tempo e para não mergulhar na solidão. Uma doença que mata. Formou-se em clínica geral em 1947 por causa do seu professor da primária que convenceu os pais do pequeno rapaz interessado pelos estudos a mandá-lo para Lisboa porque daria um bom médico. Orlando Lopes foi director, durante muitos anos, do serviço de hemoterapia do Instituto Português de Oncologia (IPO) em Lisboa. É do tempo em que as pessoas não fingiam estar doentes para faltar ao trabalho e hoje o seu maior tormento é a morte. A dos amigos, que lhe deixam muitas saudades, e a dele, na qual pensa cada vez mais.

Quando era criança já desejava ser médico?A ideia foi do meu professor de instrução primária. Ele falou com os meus pais dizendo que, pelo meu grande interesse pelos estudos, valia a pena ir para medicina. Curiosamente, depois de me formar passei a ser o seu médico durante pelo menos 40 anos. Como é que a sociedade via a profissão?O médico era uma pessoa muito considerada e respeitada, era a pessoa mais importante da localidade. Hoje as pessoas mais velhas ainda têm um grande respeito, mas os mais novos consideram o médico como um profissional que está ali para resolver o seu problema, simplesmente.Qual foi o seu primeiro trabalho como médico?Comecei em 1949, depois de cumprir o serviço militar, por trabalhar com os ferroviários. Que memórias tem da tropa?Na altura assinei um manifesto de apoio à candidatura de Humberto Delgado contra Salazar e por causa disso mandaram-me para a bateria antiaérea de Leixões. Acabei por tratar um familiar do comandante da unidade e ele escreveu uma recomendação. Nunca li o que tinha escrito, mas quando entrei para o Instituto Português de Oncologia soube que tinha sido aceite por causa do comandante. A PIDE tinha recebido boas indicações minhas por parte do comandante, o que anulou o episódio do apoio à candidatura. Como era ser médico quando iniciou a profissão?Trabalhava-se de dia e de noite. Tínhamos que ir a casa dos doentes sempre que éramos chamados, a qualquer hora. Nessa altura não havia grandes fingimentos. As pessoas quando chamavam o médico era porque estavam mesmo doentes. Ninguém andava à procura de motivos para faltar ao trabalho.Porque é que hoje já não é assim?Houve uma revolução para mudar o estado do país. Mas bruscamente houve muita gente que pensou que se podia mudar do zero para o infinito. Verificou-se uma mudança grande na relação médico-doente.Antigamente as pessoas reconheciam mais o papel do médico?Era habitual dar-se prendas pelo reconhecimento do empenhamento na resolução do seu problema de saúde. Primeiro pediam desculpa pelo atrevimento e depois lá entregavam uma cesta de ovos, uma galinha, uma peça de louça…A medicina evoluiu muito desde que se iniciou na profissão…O aparecimento dos meios de diagnóstico vieram permitir uma melhor intervenção, a descoberta de determinadas doenças e um melhor tratamento. Antigamente o diagnóstico era feito através da auscultação, palpação e da conversa. Hoje o médico já não conversa muito com o paciente.Sim, mas a conversa é muito importante. Agora o doente chega, queixa-se e o médico manda fazer uma bateria de exames complementares. Isso é muito grave, porque muitas vezes o que a pessoa tem é uma doença mais do foro emocional do que orgânico e a conversa permite fazer esse despiste. O médico também era um confidente. Contaram-lhe muitos segredos?Muitos confessavam ao médico mais coisas que ao padre.Lidou muitos anos de perto com doenças como o cancro. Como foi essa experiência?Era muito incómodo e triste comunicar aos familiares do doente que este tinha um cancro e que não ia sobreviver. A morte incomoda-o?Aconteceu muitas vezes termos uma relação mais prolongada e mais próxima com um doente que acabava por morrer. Sentia uma grande tristeza e normalmente não falava do assunto, não era capaz de desabafar. Lidou muito tempo com a morte dos outros. Pensa também na sua morte?O viver mais tempo é muito prejudicial nesse pensamento. Vamos vendo os outros a desaparecerem e a ficar com saudades deles. Isso não é muito agradável. É inevitável os mais velhos pensarem na morte. Quem é que o procura actualmente no seu consultório?As pessoas mais velhas que ainda gostam que o médico os ouça. As pessoas mais novas não têm tempo para conversar. Porque é que continua a trabalhar?O pior que existe actualmente é o isolamento e o medo. Trabalho para estar fora de casa, para conviver, para estar entretido e vou continuar até conseguir. Acredita em Deus?Há coisas que são difíceis de entender. Há coisas que não têm uma explicação lógica. Às vezes interrogamo-nos porque é que uma pessoa tão boa, tão jovem, morreu. É difícil responder a isso e acredito que há um poder superior.
“As pessoas contavam mais segredos ao médico que ao padre”

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