uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

O historiador que se “demitiu” da mocidade portuguesa e as formas de fintar a censura

Um surrealista no museu do Neo-Realismo
José Augusto França era aluno do terceiro ano quando teve que alistar-se na mocidade portuguesa. No segundo ciclo deixou de ser obrigatória a inscrição na organização e o historiador de arte, hoje com 86 anos, decidiu “”demitir-se”. Foi o único rapazinho do liceu a abandonar a organização criada em 1936 com o propósito de incentivar a devoção à pátria, a ordem, disciplina e culto dos deveres morais.Mais por imposição do pai, explica. O reitor mandou chamar o encarregado de educação do jovem estudante. O pai disse-lhe que receberia o reitor no seu escritório. “Quando lhe transmiti a explicação do meu pai lembro-me que se fez vermelho”, lembra com humor José Augusto França.Um historiador de arte, que participou nas actividades do grupo surrealista de Lisboa, e que no sábado foi um dos convidados dos “Encontros e desencontros”, um ciclo de debates do Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira.José Augusto França, natural de Tomar, era então um aluno exemplar do Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Conta que encontrou esse mesmo reitor três anos depois numa sala de aula. “Deu-me um zero redondo a matemática, mas tenho a certeza que foi porque o mereci”, confessa.Começava dessa forma quase inocente e inadvertida a oposição à normalidade instalada. Primeiro na escola. Depois através da arte. Leu os livros proibidos e as edições que se importavam da Europa e do Brasil. Folheou Steinbeck e Hemingway. Conheceu os neo-realistas. Como Manuel da Fonseca e Redol, “o mais conhecido do grupo neo-realista”. Nesses tempos as obras de Jorge Amado eram vendidas por baixo do balcão. Literalmente. E aprendeu a compreender o mundo olhando a história. “A Guerra de Espanha foi um momento muito importante em que tomámos consciência de que algo estava a acontecer na Europa”, confessa.Funcionava então a lei do lápis azul. A censura cortava. E a Pide prendia quando a censura deixava passar demais, lembra José Augusto França. O romance “Natureza Morta”, manifesto anti-colonialista escrito em 1949, fê-lo perder o emprego numa companhia africana. Falava de “um preto que apanhava pancada e de gente perdida numa plantação”. O resumo do livro, publicado na imprensa, foi proibido em Portugal, mas estranhamente a PIDE esqueceu-se de recolher os exemplares. Havia muitas formas de fintar a censura, lembra José Augusto França. Dizendo aquilo que não se queria dizer, por exemplo. “Não dizíamos Marquês de Sade, mas Marquês do Sado já se poderia utilizar”, exemplificou arrancando sorrisos da plateia. Sentiu na pele os meandros da repressão intelectual portuguesa e lutou como pôde contra os instalados brandos costumes. “Um quadro de um funeral foi apreendido porque não tinha padre”, ilustra. Um dos elementos do grupo chegou a colocar um anúncio no Diário de Notícias pedindo ao ladrão da Sociedade das Belas Artes que entregasse a obra em troca de recompensa. O anúncio foi às mãos da Pide e todos foram chamados. “Eram brincadeiras perigosas”.Em 1949 rumou a França. Foi acusado de ser comunista. Recusou o rótulo porque o não era, mas acredita que tudo o que serviu para derrubar a ditadura foi válido. “Defendíamos tudo o que fosse contra o Salazar”. Curiosamente foi um quadro do neo-realista mexicano Portinari “O Café” que criticou enquanto historiador pela primeira vez. O contemporâneo de Mário Cesariny e Alexandre O’Neill, fundadores do movimento surrealista, reconhece grandes obras ao movimento neo-realista, como às outras correntes, mas realça o trabalho de alguns que deram provas mantendo-se embora à margem das classificações. Como foi o caso de Vitorino Nemésio com a obra “Mau Tempo no Canal” (1944), marco do romance português do século XX.

Mais Notícias

    A carregar...