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“Se não nos estivermos a contradizer estamos mortos”

“Se não nos estivermos a contradizer estamos mortos”

José Augusto França, o historiador de arte natural de Tomar

Nasceu em Tomar, mas foi com meses numa cestinha para a capital. O historiador de arte, que participou nas actividades do grupo surrealista de Lisboa, foi um dos convidados do museu do neo-realismo de Vila Franca de Xira.

Já se confessou publicamente um romântico.Somos todos. É uma constante. A composição química de todos nós tem romantismo e racionalismo. Tem todas as coisas que fazem parte da vida. Naturalmente que sou por instrução ou educação racionalista, mas por leitura e por dedicação sou mais romântico do que isso. Não creio que tenha mudado muito. Envelheci, sim. Mas sem mudar. Nem de ideias, nem de comportamentos. Mas referiu que a contradição faz parte da vida.Com certeza. Se não nos estivermos a contradizer permanentemente estamos mortos. Só quando morrermos é que não temos mais contradição nenhuma. Vamos para os bichos e acabou-se. Em vida a todo o momento nos interrogamos sobre o que fazemos e sobre aquilo que nos acontece. As interpretações que sobre isso façamos são naturalmente contraditórias. É uma forma de se existir. Crescer. E às vezes minguar também. Não creio que haja outra maneira de viver. Quem não esteja interessado na carreira, no sentido mais mesquinho das coisas, o melhor que tem a fazer é aceitar-se contraditoriamente.Hoje em dia as pessoas tendem a querer construir a carreira.A vida é difícil e as pessoas querem governá-la o melhor possível. Essas construções de carreira passam por algumas cedências e algumas batotas e outras coisas piores.Que não existiam no seu tempo?Sempre existiram. Simplesmente hoje as armadilhas que nos caem em cima são maiores. Porque há mais gente e mais corrida às coisas. Não falo simplesmente da coisa material de ganhar mais dinheiro ou não. Tudo anda numa corrida naquilo que se chama a sociedade de consumo. Paga-se caro.Foi por isso que já classificou o pintor “Dali” de estupor?Foi um homem que há já 50 anos fazia isso. Foi o único dos surrealistas que ganhou dinheiro. Nenhum se prestou como ele a esse jogo de consumo comercial no sentido mais baixo da produtividade. Era um homem que assinava folhas em branco para outros desenharem. Nenhum artista pode fazer isso por respeito próprio e dos outros também. Era um homem sem moral nenhuma. O que não lhe retira a capacidade de ter feito uns quadros grandiosos na história da humanidade. Enquanto historiador de arte como gere essa informação?Os médicos fazem o Juramento de Hipócrates. Têm que tratar toda a gente. Um historiador também tem que tratar toda a gente. Se me aparecer um bandido ferido com uma bala, mesmo que ache que está mesmo bem ferido, tenho que o tratar. Se não houver a capacidade de sobrepor uma situação geral e humana aos pecados de cada qual passamos a vida a matar-nos uns aos outros. Eu chamo-lhe o Juramento de Heródoto, o criador da história. Tem que se por de parte as simpatias e as críticas morais que possa haver para tratar daquele assunto. Tenho dito bem literariamente e culturalmente de pessoas que desprezo pessoalmente e não quero conhecer. Voltou a escrever romances. E acredita na inspiração/ transpiração. Que percentagem para cada uma destas coisas?Depende dos dias. Alguma inspiração e muita transpiração. O trabalho custa. Para os homens do imaginário poético a inspiração exigida será maior que para um escritor ou historiador. Moro perto do Jardim da Estrela, em Lisboa. Esta manhã fui para lá, lembrei-me de uma coisa puxei de um papel e desatei a escrever. Chama-se a isto inspiração? Talvez. Meti o papel no bolso e voltei a ler o jornal que era o que queria fazer. Há momentos em que estamos mais predispostos para jantar ou fazer amor… E outros mais pressupostos para escrever uma página. O homem é feito de momentos.Doou parte do seu espólio aos museus. Como lida com esse despojamento?Tinha uma colecção de arte com algum interesse. E com a idade que tenho era um problema que deixava à minha mulher, se falecesse, com os quadros todos lá em casa. Todos os dias de manhã quando acordo olho para a parede onde esteve um quadro durante 30 anos. Faz-me muita falta. Mas não está, não está. É um quadro de Fernando Lemos que está em Tomar, precisamente na capa do catálogo do museu. É um dos quadros com os quais tive uma relação directa, pessoal e matutina. Tinha uma biblioteca de cinema razoável que dei à cinemateca. Metros de catálogos que entreguei à minha universidade. Conhece a expressão não o levarás contigo dentro do caixão… Já foi aventada a possibilidade de no futuro estes museus, como o de neo-realismo, dependerem do privado. É o sistema americano. O capitalismo leva a isso. O Estado não pode ter dinheiro para tudo. Não considero que uma estrada seja mais importante que um museu, mas o dinheiro não chega para a estrada e para o museu. Há muita gente com dinheiro e muitas empresas que podem contribuir para a realização de programas. O museu de Vila Franca foi construído também com dinheiros europeus. Tal como o meu museu de Tomar. Acho bem que as empresas possam contribuir e descontar nos impostos. Claro que não será só o mecenato. É preciso que o Estado assuma as suas responsabilidades. Mas a verdade é que o museu de Vila Franca muitas vezes não enche…Cada terra com seu uso. Em Tomar também. Fazemos três, quatro exposições por ano. No dia da inauguração há muita gente e depois durante a semana vai um ou outro. E em Lisboa, no Museu de Arte Contemporânea? E nas Janelas Verdes? As salas vazias, vazias… Só conheço um sítio que está sempre cheio que é Paris. Vemos 500 pessoas a dar a volta ao quarteirão para ver aquelas exposições mais célebres. E são franceses. Não são turistas. Nós não temos o hábito de ir às exposições. O único sítio onde vamos é ao cinema. E parece que já não se vai muito. E como se sentiu um surrealista num museu do neo-realismo?Muito bem, conheci essa gente, não fui inimigo de ninguém. O único neo-realista que julgava que não conhecia era o Arquimedes da Silva Santos – que encontrei aqui – e com quem afinal já me tinha cruzado. Até o Soeiro Pereira Gomes conheci à hora da morte. Andou fugido à Pide. E consentiram que fosse morrer em casa. Que ligação continua a ter com Tomar?Saí de Tomar aos cinco meses de idade e vim numa cestinha para Lisboa. Eram as imigrações que se dão nos anos 20 da província para Lisboa. Vinha a família toda. O meu pai, contabilista, teve um bom emprego em Lisboa e ganhou um concurso para a contabilidade da empresa das lezírias. Os meus avós tinham uma fazenda que desapareceu. Não tenho ninguém em Tomar. Os meus pais eram filhos únicos, tal como eu, e portanto não tenho tios nem primos. Ofereci a colecção e vou lá fazer exposições quatro vezes por ano. E uma conferência de vez em quando.
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