“Você não ia entender”

“Estou aqui à espera da morte. O que eu queria era morrer”, diz-me o homem. Pensei para mim mesmo que não havia nada que pudesse fazer. “Mata-me!”, pediu-me com os olhos. Um rosto enrugado de sexagenário com a barba por fazer. Ainda me aparece ocasionalmente em sonhos. É uma memória de que me tento libertar. A ideia para a reportagem era simples. Em pleno século XXI ainda há quem viva nas mais degradantes condições, sem água, luz ou aquecimento. As barracas ainda existem. Ainda há pobreza e fome. As casas camarárias não chegaram para todos. Esta terá sido a reportagem que mais me marcou neste curto período de tempo que levo a trabalhar em O MIRANTE. Andei em sítios que mais pareciam cenários do negro “Blade Runner”. Pelas paredes improvisadas da barraca passavam correntes de ar gelado como se estivéssemos na rua. Perguntei ao homem porque queria morrer. Ele respondeu: “Você não ia entender”. Tentei concordar. Foi a primeira habitação que visitei naquela sexta-feira nublada. Depois fui a outras. Casas improvisadas de gente que me abriu as suas vidas. Por entre tanta desolação vi alguns lampejos de dignidade. Durante dias fiquei com o cheiro da miséria entranhado no nariz, na roupa. Pensei para mim mesmo que ninguém pode estar livre de acabar numa situação daquelas. Basta fazer uma curva errada na estrada da vida. Na última barraca que visitei, nos arredores de Vila Franca de Xira, a ocupante já estava a preparar o jantar. Eram sete da tarde. Uma carcaça de pão com manteiga e dois iogurtes que foi buscar ao contentor do lixo de um supermercado. A mulher diz que tem 40 anos e dois filhos que não querem saber dela. “O mais novo, de 20 anos, já tem um Mercedes”, conta, enquanto procura uma vela para acender.

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