Eduardo Gageiro e o gosto de fotografar pessoas que têm dignidade

É fotojornalista e não quer ser outra coisa. Eduardo Gageiro escolheu o caminho a trilhar ao longo da vida quando sentiu necessidade de mostrar ao mundo velhos operários da fábrica de loiça de Sacavém, a sua terra natal, a pedirem esmola à porta da empresa. Fotografou milhares de pessoas ao longo da vida mas só tem um auto-retrato e foi a pedido. Também fez algumas fotos de nus mas confessa que, como era muito jovem, estava mais concentrado nas modelos que no trabalho.

As suas fotografias são sempre a preto e branco, mas a realidade tem cores. Não está a adulterar a realidade?Não. É uma interpretação da realidade. A minha interpretação da realidade. Acho também, do ponto de vista artístico, que o preto e branco tem mais força. A cor, muitas vezes, distrai a atenção. Mas eu estou a falar na chamada fotografia de autor. Também faço muita fotografia a cores. A eterna questão da objectividade jornalística. Um acontecimento fotografado por quarenta fotojornalistas não aparece representado da mesma forma. Cada um faz a sua própria leitura e interpretação. Acontece com os fotojornalistas e com os jornalistas. Acontece com toda a gente. Cada um escolhe o seu ângulo de abordagem e tem uma forma de narrar o que viu. Considera-se um fotojornalista mas muitos dos seus trabalhos são considerados arte.Eu faço fotojornalismo. Podem ver o meu trabalho da forma que quiserem mas eu sou um fotojornalista. É isso que eu sinto que sou. É isso que eu sempre quis ser. Porque aceitou ceder estas fotos para publicação em O MIRANTE?Eu não sou materialista. Tenho prazer em ceder estas fotos para serem publicadas na edição de aniversário de O MIRANTE. É uma excepção que abro com gosto. Às vezes cria-se uma empatia e foi isso que aconteceu. Anda sempre com uma máquina fotográfica. Nem para receber o Prémio Gazeta de Mérito, do Clube de Jornalistas, a largou. Subiu ao palco com ela a tiracolo. Ando sempre com ela. Não foi ali para me exibir armado em fotógrafo. Também fotografa com máquinas digitais?Sim, claro que sim. E quando fotografa fá-lo sempre com o mesmo empenho?Por vezes faço aquelas fotografias mais simples. Fotografias de família. Eu digo fotografias de chacha. Fui agora a Praga inaugurar uma exposição minha. Praga é uma das cidades mais bonitas que conheço. Não resisti a tirar umas fotografias. Fotografias a cores. Das tais fotografias de chacha. São para o meu arquivo. Não são para publicar.Não teve a tentação de começar de imediato a fazer fotos para um novo livro?Confesso que também fiz umas a preto e branco. Tive a ideia de publicar um livro sobre música. Lá há muitos músicos de rua. Tentei fazer algumas para esse novo livro que nem sei se irei fazer. Aqui há anos em Nova Iorque e em Newport fiz fotografias de grandes músicos. Vou coleccionando. Vou amadurecendo as ideias. Sou muito rigoroso até chegar à decisão final.As suas fotos são maioritariamente de pessoas.Um fotojornalista tem que estar permanentemente atento ao mundo que o rodeia. Em Lisboa costumo ir muito para a zona de Campo de Ourique. Deixo ali o carro. Depois apanho o eléctrico ou vou a pé. Para ver pessoas. Para me relacionar com pessoas. Para fotografar as pessoas. Isso dá-me um prazer especial. Tem que falar com as pessoas para as fotografar?Conforme. Temos que ser delicados. Não podemos ser agressivos. Não podemos violar a privacidade de cada um. Depois há uma coisa que é importante. Há sempre uma troca de olhares entre o fotógrafo e a pessoa que ele quer fotografar. Um fotógrafo com alguma experiência percebe imediatamente se a pessoa quer ou não ser fotografada. Se a pessoa é hostil não vale a pena. Se uma pessoa é fotografada contra a sua vontade, não resulta. Mas claro que há situações de fotojornalismo. De imediatismo. Situações em que as pessoas nem dão por terem sido fotografadas. Há fotografias suas em que nem as pessoas em primeiro plano, nem as restantes, perceberam que estavam a ser fotografadas. Como passa despercebido?Não sou camaleão. É uma questão de experiência. Um fotojornalista não pode cair de pára-quedas num sítio. Não pode chegar, fotografar e partir. Tem que fazer parte do grupo. Do ambiente. Tem que estar lá. Não pode ser um intruso. Fez algumas fotografias de guerra?Não. As melhores que fiz com militares foram as do 25 de Abril. Fotos do Ribatejo?Centenas. Fiz centenas. Foi a região onde comecei a fotografar, tinha eu os meus catorze ou quinze anos. Eu sou do Ribatejo. Perderam-se muitas porque ficaram em casa dos meus pais e com a humidade estragaram-se muitos negativos. E ao longo da vida fiz muitas outras. Na Feira da Golegã. Na Feira de Santarém. E fotografias de Avieiros. Muito gostava eu de fotografar os Avieiros. Gostava de conviver com aquelas pessoas e elas eram muito fotogénicas. Calculo que muitas vezes, por imperativo de serviço, teve que fotografar assuntos que não lhe interessavam por aí além.Aconteceu-me muitas vezes mas procurava sempre não fazer aquela chapa 4, como se diz. Nessas alturas procurava fazer algo diferente. Nunca encarei a fotografia como um sacrifício. Foi sempre com gosto. Ainda lhe dá prazer fotografar o Ribatejo?Há muito tempo que não faço fotografias aqui mas o Ribatejo é lindíssimo. Também fez fotografias de nus?Eu fiz alguns nus mas numa altura em que era muito novo. A intenção era mais ver os modelos sem roupa do que fazer fotografias. Nunca mais fiz nem nunca fui solicitado para tal. Eu sou fotojornalista e isso é fotografia artística. Não é nada comigo. Fotos para revistas cor-de-rosa?Do jet-zero? Aquilo não me diz nada. Aquelas pessoas não me dizem nada. O meu filho tem que fazer isso porque de vez em quando lhe marcam esses trabalhos. Eu já me livrei dessa obrigação. As pessoas que fotografo nas ruas, nas fábricas, nos campos, no trabalho, são mais interessantes e com mais nível. São pessoas dignas. Eu gosto de fotografar pessoas dignas. Fotografar a futilidade não poderia ser um bom desafio para si?Numa perspectiva crítica sim, era um bom desafio. Talvez um dia tenha oportunidade de ir a uma dúzia de festas desse jet-zero para tentar captar o ridículo de tudo aquilo.O seu trabalho pode ser ligado à corrente neo-realista?Isso foi numa primeira fase. Os velhos operários iam para a porta da fábrica, em Sacavém, pedir esmola aos novos operários. Eu queria mostrar aquela realidade chocante. Foi nessa altura que decidi ser fotojornalista. Mas eu fazia fotografias imediatistas. Quando comecei a evoluir descobri outras formas de mostrar a realidade. Felizmente tive a ajuda de pessoas interessantes. Escultores, pintores que achavam piada ao meu trabalho. As minhas fotografias tinham conteúdo mas não tinham forma. Tive professores magníficos de composição que me ajudaram a ultrapassar essa fase imediatista. A encontrar o equilíbrio. A harmonia. Tem algum auto-retrato?Não. Eu não sou narcisista. Minto, tenho um mas fi-lo a pedido. Já lá vão muitos anos. Eu nem sequer sei pôr-me diante de uma máquina fotográfica em pose. Os fotógrafos, de uma maneira geral, não se sentem bem a ser fotografados. A fotografia de Cavaco Silva com o cão ao colo“Eu quando quis fazer o livro “Revelações”, tinha que saber o máximo sobre cada um dos fotografados, para lhes propor que representassem um papel. A outra face deles, digamos assim. Para obter as informações falava com as pessoas mais próximas de cada um.No caso do Cavaco Silva, depois de registar todas as informações decidi fotografá-lo como professor de uma universidade inglesa. Professor de Oxford. A minha decisão também teve em conta eu ter visto algures uma fotografia dele com aquele chapéu das universidades inglesas.Marcou-se um dia e quando cheguei lá veio um assessor dizer-me que ele já não queria a fotografia como professor de Oxford. Fiquei atrapalhado. Assim de repente não me ocorria outra solução. Perguntei como é que ele queria ficar e disseram-me que era como primeiro-ministro. Eu ainda resisti dizendo que não sabia como é que era ficar numa fotografia como primeiro-ministro, mas explicaram-me que o Cavaco Silva já tinha preparado tudo. Ia ficar ao telefone, como se estivesse a dirigir o país.Fiz a fotografia com um telefone que foram buscar, daqueles antigos, com as cavilhas penduradas e ele a fingir que estava a falar com alguém. Actualmente o Cavaco Silva está mais à-vontade mas na altura era uma pessoa bastante contraída. A meio da sessão pedi-lhe para tirar o casaco. Com muita relutância aceitou. Tirei mais uma fotografia mas aquilo não dava. Não dava mesmo nada. De repente lembrei-me que o chefe da segurança me tinha dito que ele gostava muito de um cão e lancei-lhe o desafio. Lá foram buscar o cão e comecei o trabalho. Primeiro com o cão ao lado. Depois a fazer uma festinha ao cão. O que eu queria realmente era fotografá-lo com o cão ao colo. E lá consegui que ele aceitasse. Mas não foi fácil. Resistiu imenso. Depois, a única coisa que fiz, foi pedir a alguém que chamasse a atenção do cão. E na fotografia lá está o cão ao colo do Cavaco Silva mas desinteressado dele, a olhar para o lado. Foi uma opção. Se o cão estivesse a lamber-lhe a cara ou uma coisa do género a fotografia estava a dar uma informação errada uma vez que ele tem a imagem de uma pessoa autoritária. Institucional. Seja como for ele gostou da fotografia e de então para cá, quando calha estarmos juntos em alguma cerimónia, gosta de contar que eu fui o homem que lhe tirou uma fotografia com um cão ao colo”.“Por vezes sinto-me maltratado em Portugal”Tem dificuldade em editar livros?Não quero editores. Um editor muito famoso editou-me um livro chamado Mulher. Foi a gota de água que fez transbordar o meu copo. A qualidade de impressão era horrorosa e depois o livro nunca esgotava. Um dia chega uma carta a dizer que ia receber um cheque referente ao livro. Mas o tempo passou e do cheque nada. Telefonei para lá e ele disse-me que ainda bem que eu tinha ligado porque a pessoa que estava a tratar daquilo era uma pessoa nova na empresa, que se tinha enganado e que eu não tinha nada a receber. Aí eu passei-me. Fui pelas livrarias e descobri que o livro estava a vender bem. E que o editor tinha feito outras edições à minha revelia. E apoios para editar? É difícil. Difícil. Escrevi duas cartas ao Ministro da cultura e mandei-lhe um livro. Ele nem me respondeu. Nem sequer para agradecer o livro. Dão milhões para estádios de futebol e não têm trocos para a cultura. Trocos. Há vinte anos que ando a tentar que a Caixa Geral de Depósitos apoie a edição de um livro meu. Não consigo. Por vezes sinto-me maltratado. Maltratado por quem?Maltratado em Portugal. Lá fora não.Há uma grande exposição sua, nesta altura na China.São duzentas e vinte e duas fotografias minhas. Em Pequim ocupavam um espaço de mil e quinhentos metros quadrados. Fui convidado para a inauguração. A minha mulher não queria que eu lá fosse. O meu filho também não. Tinham medo que eu morresse na China. Eu estava fragilizado pela doença. Estava sem cabelo, sem bigode nem pestanas, andava a fazer quimioterapia. Mas disse logo que ia. Não podia perder aquela oportunidade. Quando cheguei vi logo um cartaz com a minha fotografia. Estavam lá autoridades ligadas à cultura à minha espera. E o embaixador, a directora do museu. Ampliaram as fotos com imensa qualidade. A exposição esteve em Pequim e agora está em Cantão. A seguir vai para o Japão e depois para outros países.

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