Quando os trabalhadores rurais ocuparam a Quinta ribatejana da Torre Bela

A Quinta da Torre Bela, em Manique do Intendente, Azambuja, foi ocupada por agricultores das aldeias vizinhas no “Verão quente” de 1975. O momento foi registado por um cineasta alemão que captou a “utopia da revolução”.

23 de Abril de 1975. Quinta da Torre Bela, Manique do Intendente, Azambuja. Imagens aéreas captadas de helicóptero deixam adivinhar a imensidão dos 1.700 hectares da propriedade do duque de Lafões que no pós-25 de Abril foi ocupada por um grupo de trabalhadores rurais de aldeias das redondezas. O momento foi registado pelas câmaras de Thomas Harlan, o cineasta alemão que veio a Portugal no “Verão quente” filmar a revolução.Dividido entre a propriedade de Azambuja e a “York House”, a pousada de Lisboa onde estava alojado, o cineasta enviava todas as semanas negativos para Paris. Estava empenhado em filmar a “utopia da revolução” partindo da experiência da Torre Bela onde os camponeses inventavam uma cooperativa numa tentativa de concretizar a máxima da reforma agrária: “a terra a quem a trabalha”. O envolvimento era de tal forma que a câmara de filmar passou a ser encarada pelos habitantes da Torre Bela como outro qualquer instrumento de trabalho. Um tractor, uma enxada ou a pá de valar. Como aquela empunhada por um dos trabalhadores que não percebe porque razão o obrigam a entregar o seu utensílio de trabalho à cooperativa. “Há bocado disseste que ficavas sem roupa; que ficavas sem nada. Todo este trabalho - o meu trabalho - é para que não fiques sem roupa; é para que fiques com mais roupa que a que tens. É para que tu realmente fiques com tudo. Para que não haja problemas esta ferramenta que tu dizes que é tua passa a pertencer à cooperativa, para que nada te falte”, explica em tom pedagógico o líder da ocupação da Torre Bela, Wilson, que tem nesta cena um dos mais marcantes contributos para “o grande filme da utopia apartidária”.O homem, de pá de valar na mão, que representa as impossibilidades do ideal comunista suicidou-se já lá vão alguns anos. Nunca casou e fartou-se da vida e da solidão. O assunto comenta-se entre um grupo de populares à volta de uma conversa numa rua íngreme de Manique do Intendente. Maria Vitória, a mulher que começou a trabalhar com 10 anos para ter que comer, de mãos ensanguentadas por aproveitar a azeitona enterrada debaixo de cardos e silvas, já desaparecida, tomou lugar dianteiro na luta, mesmo com a desaprovação do marido. É a protagonista do documentário de Harlan. Mais do que Wilson, o professor da Torre Bela, desmascarado pela jornalista Alexandra Lucas Coelho. “Eu dormia no quarto do duque. Era o único que tinha casa de banho privativa”, confessou 32 anos depois o líder popular da ocupação, hoje vendedor de camiões. Wilson, ex-assaltante de bancos, antecipou-se aos agricultores nas noites passadas no palácio. O mesmo palácio que os agricultores tomaram. No filme caminham pela casa lentamente. Com receio de que alguém os pudesse censurar. “Ainda a gente vamos todos presos”, comenta um dos camponeses. O mesmo que passa pela primeira vez com as mãos calejadas da enxada sobre as teclas de um piano. No interior do palácio abrem-se armários, remexem-se gavetas, folheiam-se livros, olham-se fotografias de família e vestem-se roupas. A jaqueta do duque, como a que experimentou Herculano Martins. No calor do momento, o jovem agricultor de 20 e poucos anos, hoje presidente da Junta de Freguesia de Manique do Intendente, de casaco de camuflado, deixa-se envolver na emoção da “descoberta do palácio”. Exalta-se quando, à distância de 32 anos se lhe pede uma entrevista. Não quer falar no assunto. A quinta que os agricultores tomaram é reserva de caça da família real de Bragança. A sociedade proprietária quer recuperar o palácio. Transformá-lo num hotel de charme com golfe, caça e centro equestre. O portão de uma das maiores propriedades muradas do país, filmado do céu, está agora fechado a cadeado. E os miúdos das aldeias vizinhas que assaltavam a quinta – muitos anos depois da ocupação – já não entram lá para explorar pontos de água e os escombros do palácio onde um dia viveu a utopia.

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